Livro recupera poesia de autores presos e torturados pela ditadura

Fichas policiais e documentos de escritores que ilustram o livro 'Poemas para exumar a história viva' (Reprodução/Editora Cult)

Com informações do InfoGlobo

RIO —  Preso político da ditadura militar entre 1972 e 1977, Hamilton Pereira foi assassinado ‘cem vezes’ pelo cárcere e pela tortura. Graças à poesia, ‘cem vezes renasceu’. Como ele mesmo conta nos versos de ‘Poema-prólogo’, incluídos na recém-lançada antologia ‘Poemas para exumar a história viva’ (Cult Editora), que reúne 25 poetas presos e/ou mortos pela ditadura, o autor-testemunha sobreviveu para “falar pela boca dos meus mortos”: “Porque sou o poeta/ dos mortos assassinados, / dos eletrocutados, dos ‘suicidas’, / dos ‘enforcados’ e ‘atropelados’, / dos que ‘tentaram fugir’,/ dos enlouquecidos”.

Escritos na prisão, este e outros poemas de Pereira saíram do cárcere por meio de maços de cigarro e papéis enrolados escondidos em cartas para familiares e amigos. Acabaram formando o livro ‘Poemas do povo da noite’, que circulou em uma edição artesanal de 1975. Para evitar problemas com os militares, a autoria dos textos foi atribuída a Pedro Tierra, um imaginário bardo latino-americano.

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O pseudônimo vingou, e é por meio dele, inclusive, que o autor ressurge hoje em ‘Poemas para exumar a história viva’. Organizada pelo crítico, poeta e pesquisador Alberto Pucheu, a antologia tem ainda nomes como Loreta Valadares, Lara de Lemos, Nicolas Behr, Carlos Marighella, Ferreira Gullar, Thiago de Mello e Wilma Ary, entre outros.

“Escrever o que escrevi naquele período de 1972 a 1977 foi um exercício de sobrevivência”, conta Pereira/Tierra, hoje com 75 anos. “Foi uma maneira de reconstruir a minha humanidade, que se perde quando você é submetido à brutalidade destrutiva da tortura. Muitas pessoas que ainda hoje defendem a tortura não têm ideia clara do que é submeter pessoas inocentes à violência extrema de um pau de arara, de uma cadeira do dragão, de uma coroa de Cristo…

Um dos pontos mais altos da poesia

Após a prisão, Tierra publicou diversos livros em verso e prosa, recebeu menção honrosa do prestigioso Prêmio Casa das Américas e foi um dos criadores da celebração ‘A missa dos quilombos’, com música de Milton Nascimento. Mas, assim como boa parte dos autores de ‘Poemas para exumar a história viva’, sua obra é pouco conhecida do grande público, restrita a especialistas do tema.

Basta notar que a História passou batida pelos versos de Libério Campos, pseudônimo de um grupo de guerrilheiros; ou pelos de Rosalindo Souza, cordelista desaparecido na ditadura que participou da guerrilha do Araguaia; ou ainda pelos de Maria Celeste Vidal, presa por três anos e acusada de “propagar ideias subversivas”.

O próprio organizador da coletânea, Alberto Pucheu, só foi conhecer melhor alguns dos nomes selecionados após iniciar a pesquisa para o livro. A junção de poetas obscuros com alguns altamente celebrados (Ferreira Gullar e Thiago de Mello) e de outros relativamente bem conhecidos (Flávio Tavares e Lara de Lemos) pode ser vista como uma provocação.

Dossiê do Centro de Informações do Exército criado em 1970 sobre indivíduos banidos do território nacional
(Reprodução/Cult Editora / Divulgação)

“A pergunta que terá de ser feita é: por que tantos e tantas poetas com uma poesia declaradamente política foram apagados e apagadas da história da poesia?”, diz Pucheu. De algum modo, algo que terá de ser pensado é o risco de a crítica da poesia ter, em algum grau, mesmo que involuntariamente, ou voluntariamente por outros motivos que os dos militares, repetido o silenciamento de tais poetas que a repressão tentou silenciar com a prisão, a tortura e os assassinatos.

A poeta Lara de Lemos (1923-2010) disse certa vez que a produção dos anos da ditadura representou “um dos momentos mais altos da poesia brasileira, revelando toda a dignidade do ser humano”. As obras do livro mostram como a poesia pode ser uma expressão forte para traduzir as sensações da tortura. Os sons dos passos dos algozes, a escuridão dentro dos capuzes, o sangue e a urina são imagens recorrentes.

“A hora dos/ capuzes negros/ é a hora mais negra/ dos prisioneiros”, escreve Lara de Lemos em ‘Cela-6’. Alípio Freire enumera suas feridas: “Algumas costelas fraturadas/ Cicatriz óssea no malar direito/ Um pré-molar destruído”. Paulo César Fonteneles de Lima descreve sessões de choque e afogamento, e registra as palavras de seu torturador em caixa alta: ‘TUA MULHER/ SOFRERÁ AS CONSEQUÊNCIAS’.

“Até pouco tempo, parecia que apenas a prosa lidava com os anos de chumbo”, observa Pucheu. “E vemos agora que a poesia estava lá, lidando diretamente com isso, de dentro mesmo da dor e do sonho. Há um testemunho desse trauma do país por quem o viveu corporalmente, vitalmente, no limite mesmo.

“E a noite ficou”

Mesmo após a ditadura, muitos poetas perseguidos continuaram com receio de escrever sobre suas experiências, lembra Wilma Ary, de 84 anos. Incluído no livro, o seu poema ’30 de março’ foi escrito um dia antes do golpe militar, já prevendo o pior. É marcado pelo medo e pela solidão, como boa parte da sua poesia. “Estrelas surgiram nesse 30 de março/ E a noite ficou”, escreve ela. Como repórter da Folha de S.Paulo, Wilma cobriu o movimento estudantil em 1968.

Por causa do seu trabalho jornalístico, foi presa em 1970, acusada de fazer parte da resistência democrática. Passou um mês no Doi-Codi e respondeu ao processo em liberdade durante cinco anos, no quais ficou impedida de trabalhar.

“Nunca senti medo como na época da ditadura”, diz ela. “Minha poesia é o sofrimento de um espírito liberto que passa a não ser mais liberto. Porque aprende a ter medo”.

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