Livro revela como Jurema virou religião e interesse da ciência


Por: Cenarium*

04 de maio de 2025
Livro revela como Jurema virou religião e interesse da ciência
Sítio do Acais, João Pessoa, local de referência para cultura e tradição (Perazzo Jr @perazzojr)

MANAUS (AM) – A presença de Zé Pelintra nos cultos juremeiros, assim como exus, pomba giras, mestres e mestras que também comparecem em rituais de Umbanda, como Ritinha, Luziara e Maria Padilha, impõe uma questão difícil de responder: afinal, a Jurema Sagrada é um ramo da umbanda ou uma religião separada, autônoma? Quanto comporta de orixás do Candomblé, do Xangô?

A dúvida acompanhou muitas visitas a casas e terreiros de Jurema, no Nordeste e fora dele —por exemplo, em Belo Horizonte e Santo André (SP)—, sem que terminasse dirimida de todo. Ao contrário, essa ambiguidade, essa indeterminação de fronteiras, parece revelar algo de essencial a esse complexo nordestino peculiar da religiosidade de matriz ameríndia-africana.

O antropólogo Sandro Guimarães de Salles informa que Zefa de Tiíno, como também era conhecida Mestra Jardecilha, foi representante e fiscal em Alhandra da Federação dos Cultos Africanos do Estado da Paraíba, entidade que abrigou e resgatou a Jurema da perseguição policial. Seu templo abriga ilus, tambores usados para toques de óbvia inspiração africana ausentes de rituais indígenas, em que predominam os maracás.

Nina, filha de Jardecilha, conta que a matriarca recebia Exu. O próprio filho, Lucas, é sacerdote de candomblé, embora pratique os cultos separadamente e se apresente só como Lucas Juremeiro. Ele admite que a “miscigenação” levou à perda de identidade da Jurema —cita o caso da sementação (implantação de semente de jurema-preta sob a pele do iniciado), que não era praticada por indígenas ou no catimbó e terminou assimilada por influência do candomblé.

Com efeito, é usual ouvir de praticantes —como Pai Ciriaco, Dona Raquel e Nayanne, em Alhandra, ou Alexandre L’Omi L’Odó, em Recife— que juremeiro já nasce feito, não carece de ritos iniciáticos e de reclusão, embora outros preconizem a necessidade de batismo, sementação e tombo. No caso específico da umbanda, o argumento contrário à noção de que a Jurema Sagrada seria um ramo seu se esteia no anacronismo: a matriz indígena e nordestina do catimbó que lhe deu origem se perde na bruma das eras colonial e pré-colonial.

A umbanda surgiu no início do século 20, de acordo com o que Luiz Antonio Simas denomina mito de origem: em 15 de novembro de 1908, na Federação Espírita de Niterói (RJ), o jovem Zélio Fernandino de Moraes foi levado a uma sessão que subverteu ao incorporar um espírito que se anunciou como Caboclo das Sete Encruzilhadas. Em encarnação anterior o Caboclo teria sido um padre jesuíta, Gabriel Malagrida, morto em fogueira do Santo Ofício no século. Depois disso, Zélio fundaria o Templo Espírita Nossa Senhora da Piedade, que se anunciava umbandista, cristão e brasileiro.

A menção à encruzilhada, a caboclos (indígenas), a pretos velhos e a outros elementos do culto assim surgido remete, como assinala Simas, a uma óbvia assimilação de elementos africanos e ameríndios numa mescla que, paradoxalmente, pode também ser encarada como processo de embranquecimento, por meio da imposição da disciplina evolucionista kardecista a uma plêiade de entidades supostamente primitivas, carentes de doutrina.

O amálgama se institucionalizou na forma de federações estaduais de umbanda, que proliferaram a partir de 1939, com a primeira surgindo no Rio de Janeiro. A da Paraíba nasceria em 1966, quando passou a registrar e proteger os terreiros de Jurema anteriores a ela. Nesse sentido, ao menos em sua forma institucionalizada, é evidente que a umbanda não poderia ser a fonte da Jurema Sagrada. Outra coisa, bem diversa, são elementos da Jurema anteriores à umbanda oriundos da copiosa matriz africana que alguns designam pelo termo genérico de “macumbas”.

Desde muito cedo, bem antes do sincretismo urbano, talvez já no século 18 e certamente no 19, ocorriam muitas trocas entre indígenas e africanos escravizados, fosse nos aldeamentos e nas fazendas contíguas mantidas por padres donos de escravizados, fosse nos acampamentos —mocambos e quilombos— fundados por fugitivos do jugo europeu e nas fazendas de gado do sertão com seus vaqueiros negros.

Das santidades do século 16 ao candomblé de caboclo do 19, há um fio condutor que entrelaça o uso de jurema, cachimbos e maracás com ervas, transes e cultos de ancestrais (eguns) comuns em ritos africanos, como assinala Clélia Moreira Pinto.

Mário de Andrade diria, entre milhares de notas e fichas reproduzidas no volume “Música de Feitiçaria no Brasil” (organizado postumamente por Oneyda Alvarenga), que lhe parecia indiscutível a procedência indígena do catimbó, “o que de mais intimamente nacional deu a nossa religiosidade”.

Houve contato com a macumba, não há dúvida, afirma o escritor, porém o forte da mitologia catimbozeira é amazônica, a liturgia tem bastante de ameríndia, e a música no geral adquire um lusitanismo esvaziado de Portugal, quase nada respirando da África (a não ser em produtos francamente africanos, dedicados a mestres afro-brasileiros), “tem uma molenguice que evoca uma existência tapuia, uma fusão de portuga e ameríndios”.

Ao enfatizar os componentes indígena e europeu do catimbó, Mário de Andrade segue as noções de Luís da Câmara Cascudo, anfitrião na viagem que o folclorista de São Paulo fizera a Natal em 1928, quando Andrade fechou o corpo num terreiro.

Cascudo, um pioneiro no estudo da religiosidade que daria origem à Jurema Sagrada de hoje, define o catimbó como caudal resultante de um “amável sincretismo acolhedor entre os ‘Mestres do Além’, africanos, indígenas, mestiços nacionais”, como veios de um mesmo bloco de mármore, ou três águas inseparáveis que correm para o mar.

No entanto, e na medida em que acentua os serviços lenitivos que o catimbó presta à população pobre do Nordeste, ele privilegia os ingredientes europeus das práticas mágicas em torno da planta jurema: “Os processos de feitiçaria, catimbó, bruxaria, no Brasil, são mais de oitenta por cento de origem europeia”.

Mais que isso, catimbozeiros estariam respondendo a uma urgência humana de fundo universal, ainda que uma universalidade eivada de eurocentrismo, como se percebe quando Cascudo resume o propósito de seu livro sobre o catimbó, “Meleagro”.

“‘Meleagro’ tenta evidenciar a antiguidade de muitos dos elementos sedutores no catimbó”, escreve. Antiguidade de Grécia e Roma, velhice oriental, segredos da Idade Média, não pesariam tanto se não fossem uma continuidade, rio obscuro e teimoso, desaguando na linfa mais moderna das conquistas moderníssimas. Os bruxos do catimbó vivem em todos os países do mundo.

Mestre e mestra são as designações reservadas para grandes catimbozeiros e juremeiros que, em vida, se mostram capazes de operar curas admiráveis, dar conselhos certeiros e lançar ou desfazer feitiços poderosos. Após a morte, encantam-se como entidades que preservam o título, como Mestra Jardecilha, Mestre Carlos e Mestre Manoel Cadete.

Quando baixam em rituais de Jurema, é mais uma vez para trabalhar, quer dizer, promover curas, prescrever obrigações e dar “recados”, como os que recebi de Zé Pelintra, Zé Bebim, Caboclo Aboiador, Malunguinho e Cigana, ou receitas de saúde. Embora se utilize muito a fumaça do cachimbo, prática de evidente origem ameríndia, Cascudo relaciona essa medicina de pobres para pobres menos a pajés e feiticeiros africanos que a curandeiros e bruxos herdeiros da magia europeia, possuidores dessa outra “ciência”.

Ao encantar-se, mestras e mestres passam a viver em outro plano de realidade, em cidades, estados ou reinos específicos. Essa geografia mitológica da Jurema também parece ter evidente origem europeia, pois tais divisões administrativas, por assim dizer, não teriam muito sentido entre indígenas brasileiros e escravizados africanos. A forte contribuição branca para o catimbó se manifesta, ainda, na onipresença do catolicismo popular de origem ibérica, acrescido do espiritismo kardecista ainda no século 19, antes do advento da umbanda.

Essa forma de embranquecimento do catimbó afro-ameríndio, que Cascudo em suas passagens mais generosas define como fruto de “sincretismo acolhedor”, aparece como degeneração entre estudiosos da religião em gerações subsequentes, como Roger Bastide, que enxerga juremeiros como “pobres caipiras” condenados a uma “existência medíocre” e atraídos pelo “orgulho de falar com os encantados”: segundo ele, duas psicologias coletivas inteiramente diferentes se marcam no candomblé e no catimbó, a do africano e a do indígena.

Mas, se a mitologia do candomblé é rica e complexa, a do catimbó seria, em sua opinião, pobre e incipiente, porque a antiga mitologia indígena se perdeu na desintegração dos povos originários, na passagem da cultura local para a cultura dos brancos, que estavam dispostos a aceitar os ritos, porém não os dogmas pagãos, na sua fidelidade ao catolicismo. Para Bastide, o catimbó foi concebido mais como magia do que como religião propriamente dita, devido aos elementos perigosos e temíveis e às perseguições da igreja e da polícia.

O fascínio exercido sobre acadêmicos pela suposta pureza africana no candomblé eclipsou por décadas o estudo do catimbó, após os trabalhos pioneiros de Cascudo e Andrade na primeira metade do século 20, que só seria retomado com afinco a partir da década de 1970, sobretudo por autores do Nordeste, como René Vandezande.

Ainda que pouco reconhecida nas universidades do Sudeste, uma escola de estudos antropológicos de catimbó e Jurema surgiu nos anos 1990 com os trabalhos de Rodrigo Grünewald, que pesquisou as práticas indígenas com jurema entre os atikum da Serra do Umã (PE); e de Luiz Assunção e Sandro Guimarães de Salles, que privilegiaram as relações contemporâneas entre a Jurema e a umbanda, como se pode ver pelos títulos de seus livros, respectivamente “O Reino dos Mestres: A Tradição da Jurema na Umbanda Nordestina” (2006) e “À Sombra da Jurema Encantada: Mestres Juremeiros na Umbanda de Alhandra” (2010). O trio daria origem a uma fieira de dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre Jurema, parte delas incluída na bibliografia deste livro.

Assunção conta que, ao iniciar sua investigação etnográfica, só conhecia candomblé e umbanda. Percorreu por dois anos o interior de Paraíba, Pernambuco, Piauí e Ceará, quando descobriu algo a mais nos terreiros de umbanda —a Jurema. “Era o que mantinha a casa de pé, o que a movia”, disse numa entrevista em maio de 2022, referindo-se às consultas dadas pelos juremeiros, profundos conhecedores de ervas, uma herança indígena:

“Um dos pontos que eu defendo, o principal que eu quis mostrar e fui buscar no sertão, era exatamente que a Jurema sempre existiu como prática ritualística.”

A intolerância fez com que ela se fechasse, diz, mas a Jurema também sempre foi, nessa passagem para o universo urbano, uma prática de pequenos grupos, em torno de um mestre vivo em sua comunidade, que atendia as pessoas do grupo.

(*) Com informações da Folhapress

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