Maior hidrelétrica do Governo Bolsonaro ignora sociobiodiversidade e ameaça mais de 5 mil pessoas em RO

O projeto construção na divisa entre os Estados de Rondônia e Amazonas, sobre o Rio Machado, um dos principais afluentes do Rio Madeira, atravessando boa parte da Amazônia (Isabelle Chaves/Cenarium)

Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) — Imagine uma região tomada por comunidades ribeirinhas, quilombolas, povos indígenas — incluindo grupos isolados —, produtores da agricultura familiar e áreas destinadas ao extrativismo sendo engolidas por uma inundação, num raio de 100 quilômetros quadrados, causada pela alteração do curso de um rio, colocando em risco mais de 5 mil pessoas em troca de lucro. Pois isso pode vir a se tornar realidade com uma simples ‘canetada’ do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

A ameaça está localizada em Rondônia, rondando, mais especificamente, a pequena e centenária comunidade ribeirinha Vila Tabajara, com pouco mais de 100 habitantes, nos limites do município de Machadinho do Oeste, distante cerca de 300 quilômetros de Porto Velho. Trata-se da Usina Hidrelétrica (UHE) Tabajara, o maior projeto desta categoria no Governo Bolsonaro que, se tiver estudo de licenciamento ambiental aprovado, pode destruir não só a comunidade, mas ameaçar a existência e tirar as condições de sobrevivência de quem não puder deixar a terra, como é o caso das etnias indígenas Arara e Gavião, habitantes das proximidades.

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De pé há mais de um século, a Vila Tabajara pode desaparecer com impactos ambientais causados pela barragem do Rio Machado, na divisa entre Rondônia e Amazonas (Reprodução/ EGM Drone Vision)

Violação ambiental

O projeto prevê que a construção seja feita na divisa entre os Estados de Rondônia e Amazonas, sobre o Rio Machado, também conhecido como Rio Ji-Paraná, um dos principais afluentes do Rio Madeira, atravessando boa parte da Amazônia.

Os perigos já haviam sido alertados em uma nota técnica, pública a toda a sociedade brasileira. As mais de 40 organizações, entidades e movimentos sociais, que produziram o documento em conjunto com pesquisadores da comunidade científica, entendem que a construção da barragem ignora a sociobiodiversidade das comunidades e ameaça populações tradicionais. Também apontam indícios da negligência de órgãos ambientais em relação à existência e o trânsito de povos originários na região.  

“Denunciamos que a Funai [Fundação Nacional do Índio] apresentou no Termo de Referência da UHE Tabajara só a T.I. [Terra Indígeba] Tenharim Marmelos como a única Terra Indígena atingida, ignorando as demais do entorno e principalmente os indígenas em condição de isolamento e risco. Esta omissão permitiu que os estudos feitos pela empresa JGP para viabilizar o projeto da UHE Tabajara fossem incompatíveis com a realidade. Reafirmamos nosso posicionamento de que o Termo de Referência, de qualquer projeto de infraestrutura, deve ser feito junto a todos os povos afetados para evitar os erros cometidos”, afirmam, em um trecho, os signatários da nota, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Instituto Madeira Vivo (IMV), Universidade Federal de Rondônia (Unir) e WWF Brasil, entre vários outros, considerando “as graves violações da legislação ambiental e dos direitos de povos indígenas e de outras populações tradicionais ameaçadas, na condução de um empreendimento sem viabilidade econômica, social e ambiental”. 

Narrativa do capital

Segundo o governo federal, a usina terá capacidade total de 400 megawatts (MW); um investimento de R$ 5 bilhões com a promessa de gerar pelo menos 30 mil empregos. “Mais uma obra de infraestrutura de grande porte feita na Amazônia e não, realmente, para a Amazônia. E, como sempre, envelopada numa narrativa de desenvolvimento local, quando, na verdade, o que ela leva, é impacto socioambiental para a região”, avaliou à reportagem da CENARIUM, o especialista em Sociobiodiversidade da Amazônia, Pessoas e Florestas do WWF Brasil, Octávio Nogueira.

“Na maioria das vezes, elas [usinas hidrelétricas] não entregam a capacidade de geração que justificaria um impacto desse ou que poderia vir a justificá-lo”, acrescentou o especialista. 

Protestos contra a UHE Tabajara foram realizados, também, em Brasília (Reprodução/Gilmara Camila de Oliveira Araújo)

Impactos socioeconômicos

A estimativa de impacto direto ou indireto a cerca de 5 mil pessoas, em média, “entre povos indígenas e outras populações tradicionais, sem falar da agricultura familiar e dos centros urbanos”, é do coordenador do Instituto Madeira Vivo, Iremar Ferreira. Como membro-fundador, ele ajuda a encabeçar projetos que visam a assegurar os direitos socioambientais das comunidades e a preservação dos recursos hídricos, em Rondônia.

“Sequer se considerou os territórios que estão acima de Tabajara, como a Terra Indígena Igarapé Lourdes, que engloba os indígenas Arara e Gavião, por exemplo. Não se considerou os povos que estão abaixo e nem os povos indígenas isolados. Houve um total apagamento”, apontou o ativista. “Então, como colocar em discussão estudos que negam a presença das populações locais, simplesmente para dar consistência a um estudo feito, infelizmente, ‘à meia sola’, com tantas lacunas?”, ironizou.

Para o coordenador do IMV, Iremar Ferreira, não se pode levar em consideração um estudo de impacto ambiental que nega a presença de populações tradicionais (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Ferreira aponta também a indisponibilidade do estoque pesqueiro como consequência, o que seria trágico para uma população ribeirinha, devido à dependência dos rios para a subsistência.  “Estoque que já é fragilizado por conta dos impactos das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira [também instaladas em Rondônia]. Então, como vão ficar as populações desta região que dependem do peixe como alimento básico?”, questionou.

Já o especialista do WWF Brasil, Octávio Nogueira, explica que “quando se alaga uma grande área, o impacto no entorno é muito grande”. “Uma área, por exemplo, que estava distante da água, se aproxima mais dela e isso mexe com a dinâmica da fauna e da flora. Quando se trata de recursos pesqueiros, se tem uma mudança no fluxo migratório de peixes, então, o impacto não está só ali nos rios e florestas que você alagou, mas também nesse entorno e isso tem que ser considerado, pois esses povos vivem desses recursos, não só os pesqueiros mas também do extrativismo da castanha, de óleos vegetais e outros produtos. E não apenas para a subsistência, pois isso faz parte da dinâmica econômica deles, pois é uma área produtiva”, detalhou Nogueira. 

Região da Cachoeira 2 de Novembro, no Rio Machado, em Machadinho do Oeste (Reprodução/EMG Drone Vision)

Consultas públicas bem feitas, para quê?

O Ibama realizou duas audiências públicas nesta semana para ouvir parte das populações que serão impactadas. Uma delas ocorreu na quarta-feira, 6, na Associação dos Agropecuaristas, em Machadinho do Oeste. Já a segunda, em um campo de futebol da Vila Tabajara, na quinta-feira, dia 7.

No entanto, os ambientalistas são unânimes: falta transparência, pois “finge-se que escutam as comunidades”. “Este deveria ser considerado pelo próprio órgão licenciador [Ibama] como um problema sério. Só que o próprio órgão licenciador é quem deveria respeitar às normativas e colocar isso como condição para os interessados, ou seja, a Eletronorte e a Eletrobras (…) E, por isso, a sociedade não foi informada a contento e dentro do prazo de pelo menos 30 dias”, revelou Ferreira.

“As pessoas lá de Machadinho que dialogam inclusive com o próprio Conselho Municipal de Turismo dizem que o projeto Tabajara significa matar o nosso potencial de turismo ecológico. Ou seja, aqueles que estão lá não são ouvidos”, repudiou.

Audiência pública realizada em Machadinho do Oeste, na quarta-feira, 6, pelo Ibama e prefeitura do município (Reprodução/Ariquemes Online)

Iremar relata ainda que ouviu, em um programa de rádio, o prefeito de Machadinho do Oeste, Paulo Henrique dos Santos (DEM), convidando a população a participar da audiência, poucas horas antes da reunião, oferecendo um pacote de obras de infraestrutura no meio urbano como “compensação ambiental”. “Veja a administração pública, o legislativo, aqueles que deveriam estar se colocando contrários por conta da fragilidade, não fazem isso. Não defendem o interesse público”, lamentou o coordenador do IMV.

O prefeito de Machadinho do Oeste, Paulo Henrique dos Santos (Reprodução/Prefeitura de Machadinho do Oeste)

Para o especialista em sociobiodiversidade, a condução dada às audiências realizadas pelo Ibama “parecem só o cumprimento de uma exigência para dizer: ‘olha, eu fiz’”, além de terem passado a imagem de um “direcionamento de todo o processo já em busca do resultado esperado”.

“Geralmente é tudo uma questão de tempo e eles [as autoridades envolvidas] sabem disso. Vai se passando por essas etapas, vai se complementando os estudos de forma insatisfatória, mobilizando grupos políticos, dando respostas pela metade e se vencendo pelo cansaço”, condenou.

Octávio Nogueira é enfático: “a consulta pública tem que ser ampla, prévia e, como a gente vê neste processo e em muitos outros, elas não dão tempo para que as populações se preparem e entendam o que está acontecendo, para que entendam o impacto (…) É uma população que precisa ser escutada e que precisa, antes disso, ser bem instruída”, complementou.

Alternativa solar

Na visão técnica de Octávio Nogueira, o projeto da UHE Tabajara desconsidera totalmente a oportunidade que se tem de geração distribuída por sistemas sustentáveis, como a energia fotovoltaica, ou seja, a energia solar – abundante, crescente e de graça. 

“Esta é uma região de alta insolação. Porém, a impressão que passa é a de que existe uma agenda ou grupos  políticos e econômicos, compromissos, pessoas e interesses que precisam ser atendidos e que vão ser atendidos a todo o custo, quando se teria outra opção”, afirmou. 

Já o coordenador e membro-fundador do IMV aponta que Rondônia possui 7.400 unidades de geração distribuída e que por isso, se o Estado ou o governo federal decidissem por expandir o investimento em energia solar, triplicando o total de unidades já instaladas, “não haveria necessidade de uma Tabajara”. 

Região que será inundada por conta da barragem do Rio Machado, planejada pela Eletronorte/Eletrobras e governo federal (Reprodução/ EMG Drone Vision)

“A capacidade ou a quantidade de energia que se pretende gerar com esse barramento, se nós fossemos converter isso para a energia solar, talvez com todos os telhados de Machadinho contando com placas, já se geraria muito mais do que se pretende com essa usina. Imagine se nós tivéssemos em todo o Estado, 30 mil unidades de geração de energia fotovoltaica; pronto, estaria resolvido”, sugeriu.

Exemplo de iniciativa vem do próprio Instituto Madeira Vivo que, recentemente, instalou uma unidade  geradora de energia limpa, gerada pelo Sol, em uma catedral no município de Guajará-Mirim. Uma ação feita em parceria com o Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Madeira. 

“É com iniciativas como essa que nós temos que atuar. Até quando nós vamos ficar acabando com os nossos rios para atender a interesses meramente especuladores de empresas, grandes empresas e de políticos? Os rios são portadores de direitos. E, por isso, nós precisamos garantir os caminhos possíveis para que eles permaneçam livres de barragens”, concluiu o ambientalista.

O que diz o governo federal

Apesar de diversos imbróglios nos últimos anos, o governo federal garante, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) assegurou a continuidade do processo de licenciamento ambiental, contra decisão da 5ª Vara Federal de Rondônia, “nos autos de uma ação civil pública movida pelos Ministérios Públicos Federal e do Estado de Rondônia”.

O governo também diz que a AGU “conseguiu demonstrar a plena regularidade do Ibama” e que o órgão “não apenas disponibilizou aos interessados os estudos ambientais preliminarmente, como empregou todos os reforços para garantir o envolvimento das comunidades nos debates”.

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