Manaus Invisível: quando a ‘organização’ da cidade exclui os mais vulneráveis
Por: Elisiane Andrade
23 de novembro de 2025Nos últimos dias, acompanhamos a repercussão, nos mais diversos meios de comunicação, da operação de retirada de ambulantes da cidade de Manaus, denominada “Mutirão no Centro”. Essas ações escancaram uma pequena parcela daquilo que chamamos de Manaus Invisível: uma população historicamente marginalizada, que infelizmente só ganhou os holofotes em meio à truculência, à discriminação, à xenofobia e à criminalização da pobreza.
Quem transita regularmente pelo centro de Manaus certamente já comprou algum produto de uma ambulante com seu carrinho “estacionado” na Avenida Epaminondas, Eduardo Ribeiro, nos arredores do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, na Praça dos Remédios ou em tantas outras ruas centrais. Esse tipo de comércio informal é, para muitos, uma saída diante da necessidade urgente de sobrevivência. São pessoas que enfrentam o desemprego, dificuldades econômicas, deslocamentos forçados e que se sujeitam a condições precárias de trabalho, cercadas por incertezas, medo, discriminação e barreiras burocráticas para a regulamentação de suas atividades. Restam-lhes os riscos e a resistência.
Durante essa operação, muitos chefes de família tiveram suas mercadorias apreendidas e desesperaram-se ao perder sua única fonte de renda. Em meio à truculência, humilhações, dores e protestos, o prefeito justificou a ação dizendo, com naturalidade, que “muitos dos que estão fazendo isso são imigrantes” e que “a cidade está feia”, atribuindo aos ambulantes a responsabilidade por essa “feiura”. Essas declarações, marcadas por preconceito e desumanização, repercutiram de forma negativa nas redes sociais — com razão.
É óbvio que todos queremos uma cidade organizada, limpa e segura. Cada morador e moradora de Manaus merece isso. Mas não há verdadeiro embelezamento urbano quando ele se dá às custas do sofrimento alheio. Não se constrói uma cidade mais justa ignorando ou retirando o mínimo de dignidade das pessoas. Se o objetivo é organizar o centro, a retirada de ambulantes deve ser planejada, com soluções reais de sobrevivência, oportunizando geração de renda e emprego. Agir com autoritarismo, sem oferecer alternativas, é apenas tapar o sol com a peneira. O problema não desaparece, apenas se desloca. E a fome tem urgência.
Quanto à questão dos imigrantes, é preciso lembrar: migrar é um direito. Muitos dos que estão hoje nas ruas vieram de países devastados por desastres naturais e pobreza extrema, como o Haiti, atingido por um terremoto catastrófico em 2010. A mobilidade humana faz parte da história da humanidade. Manaus é uma cidade historicamente moldada por fluxos migratórios, o que a torna acolhedora e rica em diversidade cultural. É vergonhoso ver atitudes xenofóbicas partindo, muitas vezes, de descendentes de imigrantes. Esse comportamento nos remete à figura do capitão do mato, que perseguia e entregava os seus.
Nos fluxos migratórios mais recentes, muitos têm encontrado na atividade ambulante uma forma de sustentar suas famílias. E entre esse contingente, há uma presença marcante de mulheres. De acordo com o Obmigra (2023), 42,9% dos pedidos de permanência no Brasil são de mulheres, muitas delas acompanhadas de seus filhos. Manaus é a terceira cidade brasileira com mais solicitações de regularização migratória. Esses dados ajudam a compreender por que há tantas mulheres trabalhadoras ambulantes nas ruas da capital e o desespero que sentem ao verem seus produtos apreendidos de forma violenta.
Não há passividade quando se trata de sobrevivência. Por trás de cada carrinho de frutas e verduras há uma mãe, um pai, um jovem tentando pagar o aluguel, a energia, garantir comida para os filhos. Quantas famílias ficaram sem ter o que comer hoje? Quantas serão despejadas amanhã? São perguntas pertinentes para reflexão.
Se a cidade está “feia”, a culpa não é dos ambulantes. A cidade está abandonada por décadas de descaso do poder público. Manaus sofre com igarapés poluídos, crescimento urbano desordenado, ausência de política habitacional, falta de tratamento de esgoto e saneamento básico, lixo espalhado por todos os cantos e buracos que já fazem parte da paisagem.
Discriminar os ambulantes, tratá-los como oportunistas ou criminosos, não resolve nada. Pelo contrário, agrava os problemas urbanos e aprofunda as desigualdades. Senhor prefeito, é preciso buscar soluções baseadas no diálogo, respeitando os quatro pilares dos direitos humanos: liberdade, igualdade, segurança e dignidade. Na ausência do Estado, as pessoas buscam suas próprias saídas. Isso não as torna inimigas da cidade. Elas são parte dela.