‘Marco legal na resistência’

Após sequestrados, os negros eram obrigados a dar várias voltas em torno do baobá, a fim de esquecer seus laços com a cultura, hábitos e costumes do seu grupo étnico e da terra de origem. Concluído o ritual, eram embarcados nos navios, com destino ao Brasil, onde passavam a ser escravizados e submetidos ao trabalho forçado e às mais diversas formas de tortura, resultantes da barbárie do tráfico de escravizados — um crime de lesa-humanidade. Assim, a baobá se tornou conhecida como a “árvore do esquecimento”. No Distrito Federal, há pelo menos 50 deles mapeados e vários outros espalhados pelo Nordeste e Sudeste do país.

O ritual do esquecimento não eliminou a memória dos negros. Como a baobá, que vive por centenas de anos, ela se mantém viva e fortalecida entre os afrodescendentes. Na contramão do racismo estrutural, da necropolítica e das expressões de discriminação e exclusão, os negros que assim se reconhecem estão, cada vez mais, resistentes, organizados e buscam uma reparação pacífica dos crimes praticados contra seus antepassados, por meio da aprovação do Marco Legal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (Projeto de Lei nº 1279, 17/5/2022), subscrito pela deputada Erika Kokay e 19 outros parlamentares, em tramitação na Câmara dos Deputados.

A proposta vem sendo construída há muito tempo pelo Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma). O estudo, inspirador do projeto de lei, resgata a tradição das diferentes matrizes dos povos Jêje, Bantu e Yorubá, desde a produção de alimentos, respeito à soberania alimentar, tradições, cultura e expressões religiosas, alvo da intolerância de denominações de fé eurocentristas.

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O PL 1279/22 prevê a inviolabilidade dos territórios tradicionais, hoje denominados popularmente de terreiros, barracões e casas de batuque, exceto por mandado judicial; estabelece como dever do poder público e da sociedade a adoção de ações voltas à valorização da ancestralidade africana no Brasil e ao combate ao racismo, inclusive por meio de campanhas nacionais; determina ao poder público a realização de diagnóstico socioeconômico e cultural dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana; e determina que a política de segurança pública deverá conter medidas para coibir atos violentos ou de intolerância contra os afro-brasileiros, entre outras providências que rompem com o segregacionismo étnico-racial.

O Marco Legal é um instrumento de reparação aos séculos de abomináveis condutas contra a maioria da população brasileira, formada por pretos e pardos, que somam 56% da sociedade nacional e pouco mais de 55% da força de trabalho, que garante a riqueza deste país. Em contrapartida, 75% dos mais pobres são negros. Tais discrepâncias são inomináveis e descabidas ante os valores civilizatórios de século 21, pois comprometem a condição de ser humano dos brasileiros e perpetuam injustiças e comportamentos irracionais.

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(*)Rosane Garcia, nascida no Rio de Janeiro, mas há 62 anos em Brasília, jornalista, há 41 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e, hoje, é subeditora de Opinião do Correio Braziliense.

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