Maria da Penha nos 15 anos da lei que leva seu nome: ‘Fundamental é preservar a vida da mulher’

'Se não focarmos na educação, ainda vamos nos horrorizar muito': Maria da Penha Fernandes, 76 anos (Divulgação)

Com informações do O Globo

RIO DE JANEIRO –  Aos 76 anos, Maria da Penha Fernandes é um ícone da luta das mulheres brasileiras por uma vida livre de violência. A farmacêutica cearense foi vítima de dupla tentativa de feminicídio, em 1983, quando ficou paraplégica. O agressor era seu marido. Sua luta por justiça resultou na condenação do Estado brasileiro por omissão e tolerância à violência contra a mulher pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), em 2001, e na criação da lei de proteção à mulher que leva seu nome.

Em vigor desde 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha foi desenhada a partir de um amplo debate e com intensa participação social, especialmente do movimento de mulheres, e adotou uma perspectiva feminista, destacando que garantir a segurança das mulheres significa reconhecer e respeitar seus direitos civis, sociais, culturais e econômicos. No entanto, mesmo depois de 15 anos em vigor, a implementação da lei, considerada uma das melhores do mundo, ainda deixa a desejar, especialmente em seus aspectos educativos e preventivos. 

Em entrevista ao GLOBO, Maria da Penha, que dedica sua vida ao combate à violência doméstica, critica o desinvestimento do governo federal na área, diz ser “esdrúxula” a ideia de armar mulheres para protegê-las e enfatiza a importância de se discutir o tema da violência de gênero nas escolas.

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“É necessário investir em educação. Só a educação é capaz de desconstruir essa cultura machista, que é a origem da violência contra a mulher”, disse.

CELINA: A senhora sofreu violência quando uma sequência de assassinatos de mulheres por seus companheiros tomou conta do noticiário. A imprensa e a opinião pública, no entanto, por muito tempo relativizaram esses crimes, tomando o lado dos agressores. Como se sentiu naquela época?

MARIA DA PENHA FERNANDES: Eu sofria uma violência psicológica muito grande e minhas filhas sofriam violências físicas, porque ele [o companheiro] não tinha paciência de lidar com criança. Eu comecei a me sentir muito incomodada com aquela situação, mas não existia esse termo “violência doméstica”. Quando acontecia alguma coisa, quando uma mulher era morta, a pergunta que surgia era “o que será que ela fez para merecer isso?”. No meu caso, o início da história foi um assalto. Ele simulou um assalto. Quando a polícia descobriu que o assalto não aconteceu foi que começou a minha grande luta por justiça, que demorou 19 anos e seis meses para ter uma resposta.

Nesse período, ele foi submetido a dois julgamentos. No primeiro foi condenado, mas saiu do fórum em liberdade e isso me revoltou muito e resultou na criação de um livro, chamado “Sobrevivi… posso contar”, em que eu descrevo as contradições dele, minha história de vida com ele. Esse livro, que eu considero a carta de alforria das mulheres brasileiras, chegou até a OEA pela ação de duas ONGs brasileiras, o Cladem e o Cejil, que denunciaram junto comigo a tolerância do Estado brasileiro em relação aos casos de violência contra a mulher.

Foi só a partir do meu exemplo que comecei a prestar mais atenção e tomei conhecimento do movimento de mulheres, especialmente do Sudeste, que estavam dando muita visibilidade aos casos que aconteciam na região. Quando o movimento chegou na minha cidade, eu passei a participar das caminhadas, dos encontros. Isso tudo depois da separação. Depois da tentativa de assassinato, eu voltei para a casa dos meus pais com as minhas três filhas. Saí de casa com um documento chamado “separação de corpos”, para que a minha saída não representasse abandono do lar.

Maria da Penha Fernandes sobreviveu a duas tentativas de feminicídio, cometidas por seu então marido em 1983. Sua luta por justiça abriu caminho para a criação da Lei Maria da Penha, considerada uma das mulheres do mundo para o enfrentamento à violência contra a mulher Foto: Divulgação
Maria da Penha Fernandes sobreviveu a duas tentativas de feminicídio, cometidas por seu então marido em 1983. (Divulgação)

Quando a senhora decidiu contar sua história e lutar por justiça, imaginou que se tornaria esse símbolo?

Não, nunca. Só imaginava que ficaria registrada a inoperância do Poder Judiciário, porque ele foi inoperante e machista comigo. Mas a dimensão que o meu livro ganhou foi muito maior e muito mais importante do que eu podia imaginar.

Vamos completar 15 anos de vigência da lei que leva o seu nome. Como avalia esse período? O quanto avançamos e o quanto ainda falta avançar para combater a violência doméstica no Brasil?

A lei que leva o meu nome, uma homenagem simbólica que me foi dada, é considerada pela ONU uma das três melhores do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher. A lei tipifica as formas de violência, dá oportunidade a mulher de ser atendida por políticas públicas essenciais para ela se conscientizar sobre os seus direitos e saber que caminho seguir para sair daquela situação, traz medidas de proteção. É uma lei completa e muito importante, mas muito ainda precisa ser feito, principalmente em relação à educação. É necessário que as pessoas sejam conscientizadas no nível fundamental, médio e universitário sobre os direitos das mulheres. É muito importante que isso seja implementado na educação, porque as crianças que convivem com a violência doméstica aprendem a ser violentas em casa. Elas observam esse comportamento em casa e reproduzem nas suas relações na adolescência e vida adulta.

A senhora vê a Lei Maria da Penha como um marco para mudar a forma como a sociedade brasileira olha para a violência contra a mulher?

Foi um marco. A criação da lei ajudou muito as pessoas a entenderem a violência contra a mulher, inclusive a imprensa, que muitas vezes não noticiava devidamente os fatos, via apenas o lado do agressor. Hoje não tem mais a pergunta que eu ouvi muitas vezes: “o que foi que a senhora fez para merecer esse tiro?” Era uma pergunta muito dolorosa e machista, e eu cheguei a comentar isso com as pessoas que me faziam esse tipo de pergunta. Para um dos repórteres que me perguntou isso, eu disse: “olha, se você está pensando que eu traí o meu marido, esse não foi o fato. Mas quantas mulheres matam seus maridos porque são traídas? Não existe isso. E a dor da traição é a mesma. A pergunta que você fez é uma pergunta machista.” Falei na lata. Ele disse que não era ele perguntando, mas o público que queria saber. E eu disse então que estava respondendo para que ele repassasse ao público.

Recentemente vieram a público os vídeos do DJ Ivis agredindo a esposa. Não faz muito tempo Tatiane Spitzner foi jogada da sacada do seu apartamento no Paraná, mas não sem antes gritar por socorro e não receber auxílio de ninguém. Ainda que tenha havido uma mudança na sociedade, muitas mulheres ainda sofrem violência sob o silêncio de familiares ou vizinhos que preferem “não meter a colher”. Por quê?

Esse comportamento é arraigado na nossa cultura machista. A importância da educação está justamente aí. Só a educação é capaz de desconstruir essa cultura. Só assim teremos mais pessoas sensibilizadas em ajudar. Todos nós devemos ajudar uma vítima de violência doméstica. Seja denunciando no 180 ou chamando o 190 para que a polícia chegue no local e salve essa mulher e prenda o marido em flagrante.

A Lei Maria da Penha foi concebida sob a premissa de igualdade de gênero, prezando pelo processo educacional necessário para combater a violência. Como vê a atuação de governantes que empreendem um discurso contrário a discussões sobre gênero nas escolas? É possível combater a violência contra a mulher sem lutar pela igualdade de gênero?

Não é possível. Existe um projeto-piloto no qual os homens que estão presos passam por um curso para identificar o porquê da sua agressividade. A maioria deles diz que aprendeu na infância, que viu seu pai bater na sua mãe, seu avô bater na sua avó. Isso era considerado normal e eles acabam levando isso para a vida adulta. Esse discurso contra a discussão nas escolas não pode existir mais. Precisa haver um investimento em educação porque só a educação destrói a cultura do machismo.

O que é preciso ensinar na escola?

Eu tenho uma experiência pessoal que acho que dá essa dimensão. Os filhos das militantes feministas da minha época aprenderam a respeitar os direitos humanos. Eles são hoje bons maridos e boas esposas. Minha esperança é que a educação faça isso para a sociedade de uma maneira geral, que ensine a importância de se respeitar os direitos humanos das mulheres.

Em março, a partir de uma investigação feita por CELINA, a plataforma de gêneroe diversidade do GLOBO, descobrimos que o gasto com ações de combate à violência contra a mulher em 2020 foi o menor da década. Como vê a atuação do atual governo, em especial do Ministério da Mulher, neste sentido?

Eu lamento, o investimento diminuiu. Era para ter uma Casa da Mulher Brasileira em cada Estado, mas infelizmente, isso não aconteceu. Temos poucas funcionando. E sei que algumas já estão começando a falhar no seu atendimento. Aqui no Ceará uma será aberta, mas grande parte do investimento é estadual. Por que não investir para construir uma Casa da Mulher Brasileira em cada estado? Isso facilitaria a vida da mulher ao colocar em um só local todas as políticas públicas que vão atendê-la nessa situação.

Além disso, é necessário que todos os municípios, por menores que sejam, tenham um centro de referência de atendimento à mulher. Assim como tem o Conselho Tutelar, só que no caso da mulher, dentro da unidade de saúde, porque é o local para onde ela corre primeiro para tratar dos seus ferimentos, do corpo ou da alma. Ali ela vai ser atendida por profissionais especializados, passa pelo atendimento psicológico, jurídico e social.

Uma grande parte dos assassinatos de mulheres envolve arma de fogo e o governo federal tem atuado para liberar o uso e o registro de armas no país. Desde 2017, os registros subiram 100%. Como a senhora vê essa atuação do governo?

Isso coloca em risco a vida das mulheres. É um pensamento esdrúxulo você achar que ter uma arma vai proteger a mulher. A mulher não tem a intenção de matar o homem. Não é a arma que vai resolver, mas a implementação de políticas públicas que dêem condição para essa mulher sair com segurança de uma de uma relação abusiva.

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Para muitas mulheres, romper a relação não significa estar em segurança. Muitos feminicídios acontecem justamente quando a mulher tenta romper o ciclo de violência. Como protegê-las neste momento mais crítico?

Se o agressor foi preso, é porque a mulher corria risco de vida. Se ele vai ser solto, essa mulher tem que ser informada e protegida. Ela precisa sair de sua casa e ir para um abrigo, que a lei determina que exista. Se esse juiz não faz isso, a vítima corre perigo. A gente já viu isso acontecer, e a mulher foi assassinada no momento em que esse agressor saiu da cadeia. A gente precisa que os órgãos de classe analisem o comportamento do seu corpo de juízes e os capacite periodicamente para que isso não aconteça, para que mulheres que têm medidas protetivas não sejam mortas.

A pandemia fez a violência contra a mulher aumentar, mas dificultou a realização das denúncias. Como avalia as ações empreendidas pelos governos e pela sociedade civil para lidar com este problema?

A sociedade e algumas pessoas que fazem parte de órgãos públicos criaram estratégias para que a mulher pudesse pedir ajuda nesse período. Mas eu penso que o governo federal deveria ter liberado mais casas-abrigo, para que essas mulheres pudessem sair de casa com segurança e serem abrigadas. Isso poderia ter diminuído o número de feminicídios.

Uma lei recente tipificou a violência psicológica, que já estava prevista na Lei Maria da Penha. A maior parte dos projetos que tramitam no Congresso visam alterar a lei nos seus aspectos punitivos. Como a senhora vê essas propostas?

Todas essas mudanças têm focado em criar tipos de pena ou aumentar o tempo na prisão. Mas o fundamental é a lei que já existe ser aplicada. O fundamental não é a gente saber daqui a dez anos que o autor vai ser preso porque cometeu aquele tipo de crime, porque o poder judiciário é muito moroso. O fundamental é preservar a vida da mulher.

O  que a senhora espera para os próximos 15 anos de vigência da lei?

Eu sou muito comprometida com a lei que leva o meu nome. Não meço esforços para estar presente na mídia, nos movimentos sociais, e tenho reforçado a importância da educação para que a gente consiga desconstruir o machismo, que é a origem dessa violência. Se não focarmos na educação, ainda vamos nos horrorizar com muitos crimes. Então eu espero mais investimento em educação.

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