Marília Mendonça cantou a diversidade e estendeu a mão para todos os ritmos
06 de novembro de 2022
A cantora liderou o feminejo, faceta do sertanejo protagonizada por mulheres (Reinaldo Canato/Reprodução)
Da Revista Cenarium*
SÃO PAULO – Era agosto de 2019 e Marília Mendonça cantava sobre corações partidos para uma multidão em Bauru, cidade do interior paulista. O que mais se via por ali eram mulheres chorosas com a maquiagem borrada porque foram traídas ou por causa de um término mal resolvido.
Mas havia também machões, desses musculosos e barbudos, piscando os olhos para afastar qualquer lágrima que ameaçasse escapulir. Casais homoafetivos surgiam em meio à aglomeração, abraçados ou de mãos dadas.
Homenagem à Marília Mendonça na Virada Cultural de São Paulo, em 2022 (Jardiel Carvalho/Folhapress)
Só consegui assistir a um show da rainha da sofrência antes do acidente de avião que a matou um ano atrás. Mesmo assim, aquela única apresentação provou como sua voz era o suficiente para unir LGBTs, héteros, homens, mulheres, crianças e idosos para cantar em uníssono.
Marília Mendonça liderou o feminejo, faceta do sertanejo protagonizada por mulheres, levando o feminismo para um gênero dominado por homens, ao lado de Simone & Simaria, Naiara Azevedo e Maiara & Maraisa, dupla com a qual criou dezenas de hits.
Ela virou a voz mais potente daquele cenário depois que explodiu com hits como “Infiel”, “Amante Não tem Lar” e “De Quem é a Culpa?”, sofrências cantadas do ponto de vista feminino. Anos depois, voltou a falar de mulher para mulher em “Supera” e “Bebaça”.
Combinado às músicas de refrões chiclete, seu carisma a pôs na mira de quem se sentia afastado do sertanejo, ritmo que sempre carregou o estigma de ser feito por homens héteros para homens héteros. Foi inevitável, então, que ela atraísse também os gays.
É da cultura gay endeusar cantoras femininas, como Madonna, Cher, Mariah Carey e, mais recentemente, Beyoncé e Taylor Swift. Não à toa, depois que Mendonça caiu nas graças da comunidade LGBTQIA+, passou a ser chamada de Adele brasileira por causa do seu vozeirão e ganhou ares de diva pop.
A cantora fez música com Anitta, regravou um sucesso de Luísa Sonza e fez cover de uma sofrência de Pabllo Vittar, três das artistas brasileiras mais queridas entre a comunidade LGBTQIA+ e de quem ela também era fã.
Prova do carinho que a comunidade tinha com ela é a homenagem póstuma que Gloria Groove fez para a cantora num quadro do programa Domingão com Huck, na Globo. A drag queen se vestiu como Mendonça e imitou seus trejeitos para cantar “Bebi Liguei”.
Há quem pense até que, às vezes, Mendonça cantava sobre relacionamentos gays. Um anônimo perguntou a ela no Twitter se a música “Motel Afrodite” foi escrita sob o ponto de vista de um eu-lírico homoafetivo, por causa dos versos “Eu volto lá sozinho/ Com dó de mim, falou/ Segue a vida, ele saiu no carro da frente”. Mendonça respondeu dizendo que não tinha sido a intenção, mas que gostava dessa interpretação.
A sertaneja, que era fã de Big Brother Brasil, saiu em defesa do beijo entre Gil do Vigor e Lucas Penteado na edição do ano passado, a última a que assistiu. “Incomodou o Brasil e acho que devemos expor. Se só o beijo gay foi questionado como estratégia de jogo, eles sofreram homofobia, sim”, escreveu no Twitter.
Não que a cantora fosse livre de preconceitos. Em uma live na pandemia, ela fez uma piada considerada transfóbica. Recebeu críticas nas redes sociais e disse que se retrataria. Levou à live seguinte o depoimento de uma modelo transexual.
Nas eleições de 2018, Mendonça gravou um vídeo para repudiar os discursos do presidente Jair Bolsonaro, na contramão da maior parte dos sertanejos. Disse que Bolsonaro era um retrocesso à luta das mulheres e frisou ser “contra qualquer tipo de preconceito e a favor do amor”.
Mesmo assim, não abandonou os cantores bolsonaristas. Gravou “Transplante” com Bruno & Marrone, que em 2019 foram a um almoço com Bolsonaro para serem declarados embaixadores do turismo. No ano passado, participou de uma live com a dupla e Leonardo, outro apoiador do presidente.
Marília Mendonça pousando para foto em aeronave (Reprodução/Redes Sociais)
Era sertaneja, mas navegou por vários gêneros, inclusive, os mais queridos entre seu público hétero. Participou de “Leão”, faixa que compõe o disco de rap de Xamã, cantou pagode com o grupo Menos é Mais, em “Amor Falsificado”, e convidou o pagodeiro Leo Santana para “Apaixonadinha”.
A lista de parcerias é extensa, provando que Marília Mendonça se uniu e estendeu a mão para todos. Talvez por isso tenha conseguido conectar todas as tribos. Morreu cedo demais, é verdade, mas não sem antes ouvir multidões que ainda mantêm viva a sua voz.
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