Mediunidade e DNA: será que nossos genes guardam o segredo do mundo espiritual?


Por: Lucas Ferrante - Especial para Cenarium

28 de fevereiro de 2025
Mediunidade e DNA: será que nossos genes guardam o segredo do mundo espiritual?
Mediunidade é a prática de mediar supostamente a comunicação entre os espíritos dos mortos e pessoas vivas (Composição: Lucas Oliveira/CENARIUM)

A existência de um mundo espiritual não foi comprovada pela ciência, embora algumas manchetes recentes tenham sugerido o contrário. Um exemplo é a pesquisa publicada esta semana no Brazilian Journal of Psychiatry (Revista Brasileira de Psiquiatria), conduzida por cientistas da Universidade de São Paulo (USP). O estudo analisou variações genéticas em indivíduos que se identificam como médiuns e em seus parentes de primeiro grau que não se consideram médiuns. A pesquisa gerou manchetes que afirmavam ser “o primeiro estudo no mundo a confirmar alterações genéticas ligadas à mediunidade”, sugerindo que tais variações explicariam por que médiuns ou sensitivos perceberiam a realidade de forma diferenciada. No entanto, é importante esclarecer que, embora o estudo tenha identificado diferenças genéticas nesse grupo, isso não significa que tais variações comprovem a mediunidade ou a existência de fenômenos espirituais. Na realidade, a pesquisa focou apenas na análise do DNA dos participantes, sem explorar se essas alterações têm qualquer relação com habilidades mediúnicas ou com o funcionamento do cérebro. Além disso, houve especulações sobre a glândula pineal, sugerindo que ela poderia estar relacionada à mediunidade. No entanto, o estudo não analisou a estrutura ou o funcionamento dessa glândula nos participantes, o que torna qualquer afirmação nesse sentido infundada.

Um dos pontos críticos do estudo é que ele não avaliou se os participantes realmente possuem habilidades mediúnicas. Os pesquisadores basearam-se apenas na autodeclaração dos indivíduos, ou seja, em como eles se identificam. Isso significa que o estudo analisou “pessoas que se consideram médiuns”, e não “médiuns” em um sentido comprovado ou testado cientificamente. Sem critérios objetivos para definir e medir a mediunidade, qualquer tentativa de associar características genéticas a essa prática torna-se questionável.

Além disso, a metodologia utilizada para classificar as experiências mediúnicas apresenta limitações. A escala usada para categorizar os participantes foi desenvolvida pelo próprio autor do estudo em sua tese de doutorado, mas não foi validada pela comunidade científica. Isso compromete a confiabilidade dos resultados, pois, sem uma base metodológica sólida, é difícil garantir que as variações genéticas identificadas estejam realmente ligadas à mediunidade, e não a outros fatores, como traços de personalidade ou predisposições cognitivas.

Outro aspecto importante é que variações genéticas em comum são frequentes em qualquer grupo de pessoas com comportamentos ou características semelhantes. Por exemplo, indivíduos com esquizofrenia ou com tendência à sugestão também apresentam padrões genéticos específicos. No entanto, isso não significa que essas variações estejam diretamente ligadas a habilidades espirituais ou mediúnicas. Se o estudo tivesse analisado outros grupos, como torcedores de futebol ou praticantes de uma religião específica, provavelmente também encontraria variações genéticas comuns entre eles. Portanto, a simples identificação de padrões genéticos em um grupo não é suficiente para afirmar que esses padrões estão relacionados a uma característica psicológica ou espiritual.

A forma como a mídia divulgou o estudo também gerou confusão. Algumas reportagens sugeriram que “médiuns têm variações genéticas”, dando a impressão de que a mediunidade foi cientificamente comprovada. No entanto, essa interpretação é equivocada. O estudo não oferece evidências suficientes para validar a existência de um mundo espiritual ou de habilidades mediúnicas. A falta de clareza na divulgação dos resultados pode levar o público a conclusões erradas, especialmente quando se trata de temas sensíveis e subjetivos, como espiritualidade e mediunidade.

Outro problema foi a imprecisão na discussão dos resultados. Termos como “mutações“, “polimorfismos” e “expressão gênica” foram usados de forma pouco clara, o que pode confundir quem não está familiarizado com genética. Por fim, é fundamental destacar a importância de uma divulgação científica responsável. Estudos que envolvem genética e características humanas, especialmente aquelas ligadas a crenças e práticas subjetivas, devem ser conduzidos com rigor metodológico e interpretados com cautela. A ciência não pode ser usada para validar crenças sem evidências sólidas. Cabe aos pesquisadores e à mídia garantir que temas complexos como esse sejam abordados com precisão, evitando distorções que possam levar a conclusões equivocadas.

A busca por respostas sobre o mundo espiritual ou experiências relacionadas à fé deve ser entendida como um campo distinto da ciência, cada um com seus próprios métodos e critérios. Enquanto a ciência investiga fenômenos naturais por meio de abordagens empíricas e replicáveis, a espiritualidade lida com experiências subjetivas e crenças pessoais. Um campo não deve ser utilizado para validar ou invalidar o outro, pois possuem naturezas distintas. Para que ambos coexistam de forma respeitosa e complementar, é essencial evitar interpretações apressadas ou sensacionalistas, reconhecendo as especificidades de cada domínio.

(*) Lucas Ferrante é biólogo, com mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia). É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois mais prestigiados periódicos científicos do mundo, Science e Nature, conforme dados da plataforma Lattes. Atualmente, atua como pesquisador na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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