Mulheres na luta: Samela Sateré Mawé desponta como nova liderança indígena dentro e fora do Brasil

Na foto Samela Sateré, que participou do encontro para emponderar e reposicionar socialmente as mulheres das comunidades amazônicas, esse foi o papel do encontro promovido pela FAS (Reprodução/Divulgação-FAS)
Com informações de O Globo

MANAUS – Samela Sateré Mawé estava nos primeiros anos da faculdade de Biologia quando foi confrontada, pela primeira vez, com um questionamento que a fez refletir sobre a própria existência. “Você é ativista?”, perguntou uma colega. A jovem, que até então não havia pensado sobre isso, começou a elaborar o que estava por trás da tal expressão.

“Não há um momento em que ‘puft!’, nós povos indígenas viramos ativistas. Já nascemos assim”, diz. “Sempre estivemos presentes na luta pela terra, pelos direitos humanos e pelo meio ambiente. Costumo dizer que ativismo é uma palavra nova para o que já fazemos há muito tempo.”

Não há qualquer exagero na afirmação da moça que, aos 25 anos, está a duas disciplinas de concluir a graduação na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Manaus, em meio a uma agenda internacional de militância indígena e ambiental. Entre as recordações mais tenras da infância estão as longas reuniões de movimentos e associações indígenas que frequentava com a mãe e a avó, na capital amazonense, onde nasceu.

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À época, lhe davam as mesmas folhas de papel que os adultos recebiam para anotar as pautas e reivindicações, para que pudesse ficar quietinha desenhando. Também havia a Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé, fundada pela avó, que além da articulação política promovia — e ainda promove — o artesanato daquele povo. “Mesmo criança, aquelas discussões todas eram passadas para mim, de alguma forma.”

Embora tenha nascido em Manaus, a jovem reconhece que sua história começa muito antes, com as raízes fincadas na terra indígena de Andirá-Marau, entre o Pará e o Amazonas, de onde vêm as mulheres de sua família (ela não conhece o pai biológico). Pessoas como elas são, para Samela, a grande inspiração e as bases do que a jovem reconhece como um levante feminino que está à frente da luta indígena contemporânea. “A juventude não estaria posicionada dessa maneira se as mães não tivessem levado os filhos para o movimento, quando começaram a romper com a ideia de que só os homens saíam dos territórios.

Diferentemente deles, elas têm um olhar mais profundo sobre o coletivo e o futuro das gerações”, afirma a moça, que posou para as fotos deste ensaio com as pinturas típicas do seu povo, inspiradas em tecidos de palha. Os cliques foram feitos durante a passagem de Samela pelo Rio, no fim de semana passada, quando participou de uma das mesas de debate promovidas pelo Festival LED — Luz na Educação, no Museu do Amanhã e no Museu de Arte do Rio. Feitos de jenipapo, os desenhos levam até duas horas para ficarem prontos e, segundo os saberes ancestrais, trazem proteção.

A junção entre ancestralidade e ciência é justamente a via pela qual a jovem pretende seguir na pauta ambiental. “Costumamos dizer que esse saber é a cura da Terra. Mas isso também está no conhecimento científico. Então, precisamos alinhar as duas coisas”, pondera. É com essa bagagem e uma conta no Instagram seguida por mais de 70 mil pessoas que Samela tem se firmado como umas da principais lideranças jovens do movimento indígena no Brasil.

O primeiro boom de notoriedade veio há dois anos, quando, no auge da pandemia, a moça tomou frente da comunicação da associação de artesãs para conseguir apoio. Afinal, com as determinações de isolamento, as vendas cessaram. Por intermédio do escritor André Baniwa, ela chegou até um grupo do Reino Unido que comprou todos os produtos disponíveis. Em seguida, conseguiu verbas para adquirir máquinas e tecidos para produzir máscaras.

Advinha só quem fez a divulgação dos produtos nas redes? “Postei uma foto nossa com as máscaras, e as pessoas começaram a encomendar. Como as mulheres não queriam aparecer diante das câmeras, só sobrava eu”, narra. “Gravava vídeos relatando o que estávamos passando e divulgando os produtos. Com o tempo, fui me acostumando a falar, e o público começou a querer saber cada vez mais sobre o meu trabalho.”

A articulação serviu também como passaporte para os principais eventos da agenda climática. No ano passado, Samela foi até Glasgow, na Escócia, para a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-26) e, em junho deste ano, esteve na Suécia para a Estocolmo +50. Em ambos, chamou a atenção até mesmo dos mais experientes, como a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira. “A Samela participou de um painel comigo, e pude observar como ela tem clareza sobre o que pretende defender.

Não se coloca de um modo reativo, mas como uma agente de transformação”, descreve Izabella, elogiando também a segurança com a qual a jovem transita por esses locais. “Ela faz parte de uma geração global e, ao chegar lá, encontrou vários pares. Inclusive, no Brasil, as pessoas veem isso de uma maneira muito equivocada, quando chamam a Greta de pirralha, por exemplo. Ao agirem assim, não estão percebendo as mudanças no mundo.”

A desenvoltura de Samela cativou também o olhar de Hugo Cuccurullo, diretor do Canal Reload, uma plataforma de notícias voltada ao público jovem. Ao perceber o potencial da moça, ele não teve dúvidas de que ela deveria fazer parte do time de comunicadores da empreitada. “Não queríamos ter apenas pessoas do eixo Rio-São Paulo e assistimos a mais de cem vídeos com testes de pessoas de todo o Brasil”, conta o diretor. “Percebemos que ela tinha um posicionamento muito forte e uma facilidade em se comunicar.”

Na plataforma, há vídeos da jovem com explicações sobre temas como a perseguição aos Yanomami, as consequências do garimpo ilegal e a apropriação cultural. A oratória, afirma Samela, nem sempre foi plenamente dominada. Nos primeiros anos de faculdade, ainda se sentia bastante insegura e, quando precisava falar em público, gaguejava.

Com os projetos de iniciação científica, começou a treinar em casa, mas o ambiente acadêmico acabou fazendo com que adotasse uma linguagem muito técnica. Com o Reaload, veio a virada de chave. “Tenho que falar de forma que o meu parente que mal fala o português entenda o que estou dizendo, assim como os idosos e as crianças, porque são eles que vão para as manifestações e para os atos. São eles que estão em Brasília levando spray de pimenta e bala de borracha.”

O mesmo didatismo é usado na hora de combater preconceitos. Segundo ela, muitos brasileiros têm dificuldade em compreender os indígenas como seres diversos. “Há uma ideia estigmatizada que viram na escola e na TV. Mas existem indígenas de cabelos cacheados, lisos e de todos os tons de pele. E ainda dizem que não somos indígenas porque usamos celular. O que mais me irrita é que, às vezes, você está na frente da pessoa, dizendo quem é, e ela responde na sua cara que não. Somos 305 povos no Brasil, não somos genéricos. Quando alguém nega a nossa identidade, ainda está nos colonizando.”

A situação fica ainda pior quando a ignorância se junta à máquina de ódio nas redes. “Nunca recebi uma ameaça de morte, mas já me mandaram mensagens desejando coisas horríveis ou fetichizando os nossos corpos”, desabafa.

Por outro lado, a fama fez também com que Samela fosse procurada por marcas interessadas em firmar parcerias. Ela afirma que, nesses casos, verifica o histórico das empresas assim como os posicionamentos políticos das mesmas antes de fechar qualquer contrato. “Uma vez, fui procurada por uma e, ao pesquisar a seu respeito, descobri que era umas das maiores desmatadoras do Brasil”, narra. “Muitas não estão interessadas em ajudar, de fato. Querem só colocar um indígena ali para dizer que nos apoiam.”

Com viagens agendas para Nova York e uma turnê pela Europa nos próximos meses, Samela ainda não tem uma equipe para administrar seus compromissos. Para se organizar, agenda todas as atividades numa planilha do Google.

Também troca muitas ideias com o namorado, Tukumã Pataxó, outra jovem liderança indígena com quase 200 mil seguidores no Instagram. Ele nasceu na aldeia Coroa Vermelha, na Bahia, e os dois se conheceram em meio às mobilizações contra o Marco Temporal, em Brasília. Oficialmente juntos desde outubro do ano passado, ambos lidam com o relacionamento à distância com a naturalidade de uma geração hiperconectada.

“Nos vemos, em média, uma vez por mês e aproveitamos as viagens e eventos para nos encontrarmos. Nossa agenda é muito cheia, e a prioridade é o trabalho. O que nos uniu foi a luta. Sabemos que não podemos desperdiçar as oportunidades.” A fala soa como um eco dos discursos bradados por grande parte da comunidade científica nos últimos anos: se as mudanças não começarem agora, talvez, fique tarde demais.

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