Mulheres negras na intersecção de gênero, raça e classe


Por: Cláudia Monteiro de Araújo*

19 de novembro de 2025
1.    Introdução

A experiência da mulher negra no Brasil é singularmente complexa, marcada por uma intrincada teia de opressões que se manifestam de formas multifacetadas. Longe de ser um mero somatório de discriminações, a interseccionalidade de gênero, raça e classe social atua como um sistema de sobreposição de vulnerabilidades que, em muitos casos, culmina na revitimização dessas mulheres. Essa dinâmica não apenas perpetua ciclos de injustiça, mas também invisibiliza as especificidades de suas lutas e demandas. Compreender a profundidade dessa revitimização exige um olhar atento às raízes históricas e às manifestações contemporâneas dessa opressão, que transcende as esferas individual e social, impregnando estruturas e instituições. Como aponta Djamila Ribeiro, a interseccionalidade nos permite “compreender as complexas formas de subordinação que se manifestam a partir do cruzamento de diferentes eixos de poder” (RIBEIRO, 2017).

2. O Contexto Histórico

A gênese da revitimização da mulher negra no Brasil remonta ao período colonial, com a instauração da escravidão. Mulheres africanas foram arrancadas de suas terras e culturas, submetidas a uma condição desumanizadora que as privava de sua dignidade, autonomia e humanidade. A violência sexual e física era uma constante, não apenas como ferramenta de controle, mas como estratégia de desarticulação de suas identidades e laços familiares. Angela Davis, em sua obra seminal sobre as mulheres, raça e classe, explora como a escravidão foi particularmente brutal para as mulheres, que eram “duplamente oprimidas pela escravidão e pelo sexismo” (DAVIS, 2016).

A abolição formal da escravidão, em 1888, não significou o fim da subalternização. Pelo contrário, as mulheres negras foram lançadas à margem da sociedade, sem acesso à terra, educação ou oportunidades de trabalho digno. Essa herança histórica consolidou um cenário de precariedade estrutural, onde a mulher negra foi relegada aos trabalhos mais desvalorizados e insalubres, perpetuando um ciclo de vulnerabilidade econômica e social que se estende até os dias atuais. A memória e as cicatrizes desse passado são elementos cruciais para entender as formas contemporâneas de revitimização.

3. A Interseccionalidade de Gênero, Raça e Classe

A interseccionalidade, conceito desenvolvido pela jurista Kimberlé Crenshaw, é fundamental para compreender a experiência da mulher negra. Não se trata apenas de ser mulher e ser negra, mas sim de como essas identidades se cruzam e produzem uma forma específica e intensificada de opressão. A classe social adiciona mais uma camada a essa complexidade. Uma mulher negra de baixa renda, por exemplo, enfrenta desafios que uma mulher branca da mesma classe, ou uma mulher negra de classe média, não experimenta da mesma forma.

Essa abordagem nos permite enxergar que a discriminação não é linear. A mulher negra não sofre “duplamente” por ser mulher e por ser negra, mas sim vivencia uma opressão que é qualitativamente diferente, resultante da combinação dessas categorias. Sua negritude e seu gênero não são apenas atributos individuais; são marcadores sociais que as posicionam de forma desfavorável em múltiplas dimensões da vida, desde o acesso à saúde e educação até a inserção no mercado de trabalho e a exposição à violência. Leila Gonzalez, ao discutir a “amefricanidade”, enfatiza como a mulher negra é atravessada por essas múltiplas opressões, sendo “um ser historicamente marcado por relações de dominação, tanto de classe quanto de raça e gênero” (GONZALEZ, 1984). É essa interação complexa que a diferencia e a torna alvo de formas específicas de marginalização.

4. Como Mulheres Pretas Hoje Sofrem Mais Devido ao Gênero e à Cor

A revitimização da mulher negra na contemporaneidade é um reflexo direto da persistência de estruturas racistas, machistas e classistas. Ela se manifesta de diversas formas, revelando a complexidade da opressão interseccional. No mercado de trabalho, por exemplo, mulheres negras enfrentam maior taxa de desemprego, salários mais baixos e menor acesso a cargos de liderança, mesmo quando possuem a mesma qualificação que homens brancos, mulheres brancas ou até homens negros. São frequentemente direcionadas para ocupações informais ou precarizadas, reproduzindo a lógica de subalternização histórica.

A violência é outra faceta cruel dessa revitimização. Mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio no Brasil e sofrem com a invisibilidade de sua dor. A violência doméstica e sexual, muitas vezes perpetrada por parceiros ou figuras de autoridade, é agravada pela dificuldade de acesso a redes de apoio e pela desconfiança institucional. Além disso, a saúde da mulher negra é negligenciada, com índices mais elevados de mortalidade materna e menor acesso a tratamentos adequados, evidenciando o racismo estrutural no sistema de saúde. Djamila Ribeiro ressalta que “a mulher negra tem sido alvo de violência e marginalização em diferentes níveis e setores da sociedade” (RIBEIRO, 2017).

É crucial destacar que a opressão da mulher negra não se restringe à dominação por homens e mulheres brancas; ela também pode ser experienciada na relação com o homem negro. Embora compartilhem a experiência do racismo, as dinâmicas de gênero dentro da comunidade negra podem reproduzir padrões machistas, onde a mulher negra é submetida a expectativas e papéis que a marginalizam ainda mais. Angela Davis nos lembra que a luta por justiça e equidade deve ser abrangente, reconhecendo que “a libertação das mulheres negras é um elemento indispensável para a libertação de todos os oprimidos” (DAVIS, 2016). Essa multiplicidade de opressões exige uma compreensão aprofundada e um compromisso contínuo com a construção de uma sociedade verdadeiramente equitativa.

5. Considerações Finais

A complexidade da revitimização das mulheres negras diante da interseccionalidade de gênero, raça e classe social exige mais do que uma mera constatação; demanda uma ação transformadora e contínua. As análises de Angela Davis, Lélia Gonzalez e Djamila Ribeiro nos fornecem um arcabouço teórico robusto para desvendar as camadas de opressão que historicamente e cotidianamente afetam essas mulheres. Fica evidente que a luta pela equidade não pode ser compartimentada: não há libertação de gênero sem libertação racial, nem libertação racial sem justiça de classe.

A superação dessa realidade exige um compromisso multifacetado da sociedade. Isso inclui o fortalecimento de políticas públicas que combatam o racismo estrutural e o sexismo em todas as esferas – da saúde à educação, do mercado de trabalho à segurança pública. É fundamental garantir acesso equitativo a oportunidades e recursos, desmantelando os privilégios sistêmicos que perpetuam a marginalização. Além disso, é imperativo que a narrativa sobre as mulheres negras seja reapropriada e valorizada, reconhecendo sua resiliência, sua agência e suas contribuições inestimáveis para a construção da sociedade. Somente através de uma conscientização profunda e de ações concretas e interseccionais será possível construir um futuro onde a revitimização das mulheres negras seja apenas uma triste página da história, e não uma realidade presente.

(*)Cláudia Monteiro de Araújo é advogada consolidada em Portugal desde 2006, com formação em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa (2002) e um MBA Executivo (2022). Sua extensa jornada acadêmica inclui um doutorado em Direito na Argentina e um mestrado em Psicanálise no Brasil, ambos com previsão de conclusão para 2025. Complementarmente, ela expande seus conhecimentos com um diploma em Engenharia Ambiental, focado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Reconhecida por sua expertise em Direitos Humanos, Cláudia é uma palestrante ativa em conferências e workshops, abordando principalmente as políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica. Sua contribuição intelectual se estende à literatura, com o livro "Violência Doméstica Contra a Mulher e o Risco de Morte", além de artigos científicos como "African Women and Financial Inclusion" e "Mulheres Islâmicas e Educação", e análises de sua obra publicadas no Jornal Generus.

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