Música que embalou Copa do Mundo de 1970 virou hino da ditadura militar

A letra ufanista, somada ao triunfo brasileiro no México, caiu como uma luva nas mãos da ditadura militar (Divulgação)

Da Revista Cenarium*

SÃO PAULO – Quando ainda era secretária de Cultura do governo Bolsonaro, Regina Duarte concedeu entrevista à CNN na qual lembrou, com saudade, do período da ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Para a atriz, filha de um tenente reformado e pensionista do Exército, a sociedade brasileira deveria parar de cobrar os militares pelos crimes do período de repressão.

“Ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 1960, 1970, 1980? Gente, vamos embora. Vamos embora pra frente? ‘Pra frente, Brasil. Salve a seleção! De repente é aquela corrente pra frente…’ Não era bom quando a gente cantava isso?”, perguntou Regina, sorrindo, ao repórter.

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Na recordação saudosa da ex-secretária, a canção “Pra Frente, Brasil”, composta para seguir a campanha da seleção brasileira na Copa do Mundo do México, em 1970, pouco tem a ver com o sucesso de Pelé e companhia nos gramados mexicanos, cujo título completa 50 anos neste domingo, 21, mas sim com uma suposta ideia de progresso e unidade nacional, o que também foi alardeado pelo governo militar à época.

Daí a lembrança de Regina Duarte, admiradora do regime, ser meramente política, não esportiva. O que explica a conotação que a música ganhou ao longo dos anos.

Músicas sobre a seleção não foram uma novidade do tricampeonato mundial. As primeiras participações brasileiras em Copas já haviam sido retratadas no cancioneiro popular. Carmen Miranda, por exemplo, emprestou sua voz à marcha “Paris”, uma homenagem aos jogadores que partiram para a França disputar a competição em 1938.

“Foi quando o Brasil fez a sua melhor campanha até então, o Leônidas foi cantado. Logicamente que na Copa do Mundo de 1950 também surgiram músicas. Mas o boom mesmo foi com a conquista de 1958, quando surgiu a primeira grande música da seleção brasileira, ‘A Taça do Mundo é Nossa’. Essa música foi feita dias depois da conquista”, conta à reportagem o jornalista Beto Xavier, autor do livro “Futebol no país da música”.

O que “Pra Frente, Brasil” alcançou, porém, foi a eternidade. Nenhuma canção mundialista teve tanto sucesso como ela, que se aproveitou de algumas circunstâncias determinantes para se instalar no imaginário do torcedor brasileiro, entre elas o ineditismo das transmissões ao vivo do Mundial na TV.

A Globo, que buscava se consolidar como a principal emissora do país, realizou um concurso musical que escolheria a canção oficial da seleção no México. A iniciativa foi bancada por três patrocinadores das transmissões: Esso, Souza Cruz e Gilette.

Composta pelo publicitário Miguel Gustavo, que já havia trabalhado em composições com o cantor Moreira da Silva, a letra de “Pra Frente, Brasil” ganhou a melodia do trombonista Raul de Barros e venceu o concurso da Globo.

“O Miguel Gustavo tinha na veia a publicidade, os jingles, uma antena comercial violenta. Mas acho que nem ele poderia imaginar que a música ganharia a dimensão que ganhou”, afirma Beto Xavier, que não credita o sucesso da canção somente à conquista do tri e às transmissões ao vivo, mas pela própria qualidade técnica da música.

“A música é poderosa, né. Tem uma introdução forte, uma coisa meio militaresca, varonil, ufanista. E uma letra perfeita, que Dorival Caimmy assinaria, sabe? Faço uma comparação com ‘Uma Partida de Futebol’, do Skank, que te leva para frente “, diz o jornalista.

O primeiro verso de “Pra Frente, Brasil” precisou ser corrigido às pressas. Isso porque Miguel Gustavo havia composto o trecho com “Setenta milhões em ação”, mas um censo divulgado pouco antes da Copa do Mundo, no qual mostrava que a população brasileira já alcançara os 90 milhões, forçou a mudança de última hora, a tempo de entrar nas transmissões da Globo já atualizada.

A letra ufanista, somada ao triunfo brasileiro no México, caiu como uma luva nas mãos da ditadura militar.

O governo de Emilio Garrastazu Médici aproveitou o sentido patriótico da canção para propagandear o chamado “milagre econômico”, termo que os analistas utilizaram para definir o crescimento da economia brasileira à época -um aumento do PIB de 10,2% ao ano, em média, entre 1967 e 1973.

A canção, que já se instalara no imaginário e no cotidiano da população, também trazia versos como “Parece que todo o Brasil deu a mão!”, passando uma falsa imagem de unidade justamente no auge da repressão, endurecida com o AI-5 instituído em 1968 pelo governo de Costa e Silva.

Se para Regina Duarte a música traz a lembrança de um Brasil próspero, como os militares quiseram fazer crer, para outros as recordações da letra de Miguel Gustavo, que morreu dois anos depois do lançamento de “Pra Frente, Brasil”, são bem menos positivas e também têm pouco a ver com a conquista do tricampeonato.

Ao jornalista Juca Kfouri, em 2013, a então presidente Dilma Roussef, torturada pelos militares, admitiu que a canção, mais de 40 anos depois, ainda lhe trazia dor. “Porque a memória da tortura e da prisão associa uma coisa à outra”, escreveu Kfouri em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo em que foi publicada a entrevista.

“Nós ganhamos. Eu não tenho vergonha de contar aos meus o que fiz. Não torturei ninguém. Eles [militares] é que têm. Nós ganhamos”, contou Dilma ao colunista.

(*) Com informações da Folhapress

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