Na Venezuela, mestres e doutores recorrem a doações para conseguir comprar comida e remédios

A professora aposentada M, que prefere não mostrar seu rosto, vende móveis e bibelôs para sobreviver (Elianah Jorge)
Com informações do Infoglobo

CARACAS —  Uma elite intelectual à míngua. Com salários em bolívares em um País que vive uma dolarização de fato, centenas de professores universitários na Venezuela, com doutorado ou mestrado, estão na miséria. A situação é mais crítica para os idosos, em especial os aposentados, que muitas vezes só conseguem comer graças a doações. Outros vendem bens e pedem dinheiro na rua. Os mais jovens, ainda com energia, se desdobram em outros trabalhos para aumentar o orçamento.

A professora universitária M, que pediu para não ter seu nome publicado, é o retrato do suplício dos docentes venezuelanos. Aposentada, ela recebe 40 bolívares ao mês, equivalente a pouco menos de US$ 9, e consegue comida por meio de doações. Assim vai “enganando a fome”.

“Estou vendendo móveis e bibelôs para conseguir comprar comida e remédios. Esta cômoda do século passado, que foi da minha bisavó, também está à venda. Pelo valor histórico valeria US$ 3 mil, mas a vendo por US$ 500. Também vou vender o carro. Prefiro comprar alimentos a gasolina”, conta a economista de 72 anos, que por décadas deu aulas na Universidade Central da Venezuela (UCV), a mais conceituada do País.

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Salário máximo: US$ 10

Hoje, o valor máximo pago por mês a um professor titular da UCV é de 46,06 bolívares, o equivalente a US$ 10. É como se um professor titular da USP ganhasse o equivalente a R$ 56. De acordo com o Observatório Venezuelano de Finanças, a cesta básica em novembro deste ano chegou a US$ 342. Um quilo de carne custa 41,48 bolívares, ou US$ 9. 

“A situação dos professores universitários, que dependem apenas do salário, é crítica. Os professores mais jovens buscam alternativas, como dar aulas particulares ou fazer consultorias. Os aposentados idosos estão em situação mais complexa porque o que recebem não é suficiente para comprar a cesta básica”, explica Marianela Herrera, médica e membro do Centro de Estudos de Desenvolvimento da UCV.

Também professora universitária, Herrera trabalha em um projeto para identificar as necessidades dos colegas já aposentados. Foi a partir do pedido de ajuda de um professor que ela, a antropóloga Nashla Báez e o administrador Manuel García enviaram um questionário a mais de 6 mil docentes da UCV.

“O resultado foi surpreendente. Recebemos 750 respostas. Desse grupo, 100 docentes disseram estar em situação bastante grave. Ao menos 15 informaram que comem dia sim dia não”, conta García, que trabalha no Instituto de Proteção ao Professor da UCV. Para conseguir algum dinheiro, alguns venderam o anel de formatura.

Segundo Luis Francisco Cabezas, presidente da Associação Civil Convite, “a situação dos professores universitários é uma das mais graves do País”.  

“Este setor é o mais impactado pela emergência humanitária complexa vivida na Venezuela. Os salários deles são em bolívares, e a hiperinflação triturou o poder de compra. Há poucos anos um professor titular podia viver de maneira cômoda. Agora nenhum recebe salário superior a US$ 150 por mês. São profissionais com pós-doutorado, doutorado, mestrado, falam vários idiomas, e agora estão em situação precária”.

Pedido de esmolas

Até 2016, o salário de um professor universitário na Venezuela era equivalente em bolívares a 700 dólares. Há anos a hiperinflação, que só este ano supera 1.000%, derrubou os proventos.

“A queda em 2017 foi abrupta. O salário dos professores passou para o equivalente a US$ 70 e, no ano seguinte, para US$ 3. Agora está entre US$ 7 e US$ 11”, explica Manuel García.

Fernando Rodríguez, matemático aposentado e ex-professor da UCV, hoje pede esmolas nas ruas de Caracas. “Desde 2018 esta é minha rotina: saio de casa e peço ajuda nos sinais. Ou vou para Las Mercedes [bairro abastado da cidade], onde ficam os restaurantes, e lá consigo algo para comer e dinheiro. Uma vez ganhei uma nota de US$ 20”.

Rodríguez mora em um apartamento próprio em um bom bairro da capital. No entanto, diz, o que consegue é apenas para comida. “Há meses não pago condomínio. Isso, no momento, não é prioritário para mim”.

Em meio às dificuldades financeiras, a professora aposentada M teve um diagnóstico de câncer em 2020. Graças a uma campanha pelas redes sociais, ela conseguiu os quase US$ 4 mil para a cirurgia. O apoio veio de colegas e ex-alunos que vivem fora da Venezuela, que também a ajudaram a pagar a quimioterapia. Quando começou a melhorar, o marido contraiu Covid. 

“Um dia ele disse que não se sentia bem. No outro foi ao hospital, onde o internaram. Três dias depois me entregaram uma caixinha com as cinzas daquele que por mais de 40 anos foi meu companheiro. Tudo isso é forte demais para mim”, conta a professora, que agora recebe cuidados psiquiátricos.

Solidão e depressão

Diante da caixa dos remédios e perto da parede com ímãs dos países que visitou quando o salário de docente ainda o permitia, ela conta como faz para continuar o tratamento.

“Tomo oito remédios por dia: dois são para a depressão. Preciso chegar cedo à farmácia para receber a doação do remédio psiquiátrico. Para o tratamento contra o câncer, amigos que estão no exterior enviam o dinheiro e assim consigo comprar os comprimidos. Nunca pensei que passaria por isso, sobretudo nesta idade”.

A solidão da professora é outro agravante. Com as poucas economias que tinha, em 2018 ela e o marido mandaram o filho fazer uma pós-graduação na Espanha. Assim, vivendo legalmente na Europa, ele poderia lhes enviar dinheiro. “Mas chegou a Covid, e ele está fazendo bicos para sobreviver lá”.

O questionário distribuído pelo projeto da UCV apontou outra consequência do empobrecimento dos docentes.

“Alguns professores emagreceram, em média, 8,7 quilos. Outros chegaram a perder 15 quilos. Isso tem a ver com a dolarização de fato da economia. Sobretudo a partir de 2019, quando os produtos foram dolarizados, menos os salários dos professores, que continuam em bolívares”, diz a antropóloga Nashla Báez.

O grupo passou a arrecadar doações de alimentos. Na lista de professores atendidos, as idades variam entre 65 e 99 anos. Há critérios de prioridade. “Se a pessoa mora sozinha, é muito idosa, está há dias sem comer, se tem problema de saúde, buscamos atendê-la o mais rapidamente possível mesmo com os poucos recursos que temos”, explica Báez.

Uma pesquisa feita pela Associação Civil Convite aponta que em todo o País cerca de 960 mil idosos moram sozinhos por causa da emigração de parentes. Isso levou a um aumento do número de idosos com depressão.  

“A situação emocional dos docentes é de alto grau de frustração, angústia e de desespero por causa da situação pela qual estão passando”, explica Victor Marques Corao, psicólogo e presidente da Associação de Professores Universitários da UCV.

A ministra da Educação Superior, Jaqueline Farias, informou que recentemente foi apresentado à Vice-Presidência uma tabela de ajuste salarial. Ainda que seja aprovada, o valor continuará longe de oferecer uma velhice tranquila àqueles que ajudaram a construir o País.

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