‘Não é frescura e eu passei por isso’, relata jovem sobre pobreza menstrual

Em Março deste ano,a CENARIUM ressaltou que 213 mil jovens são afetadas pelo não acesso aos produtos de proteção básica no período menstrual(Reprodução/ Maria Ribeiro)

Priscilla Peixoto – Da Revista Cenarium

MANAUS – “Lembro que por causa da nossa situação econômica, por vezes, eu cheguei a usar paninhos recortados de camisas velhas e também outras coisas que eu conseguisse me forrar no período menstrual. É estranho ouvir alguém dizer que chegou ao ponto de não ter dinheiro para comprar um simples absorvente, eu sei, mas é real e mais comum do que se imagina para meninas de famílias de baixa renda e/ou bem carentes mesmo, principalmente, as do interior”, conta a universitária Paola Xavier.

A jovem parintinense de 26 anos, que foi criada em uma casa simples no bairro Itaúna, em Parintins (distante 369 quilômetros de Manaus), dividia o cotidiano com mais quatro irmãos e a mãe provedora do sustento da família. Hoje, ela já não precisa mais de velhos retalhos para se proteger do sangramento, mas certamente a realidade de Paola reflete mais uma dentre tantas meninas adolescentes que contribuíram para a soma das estatísticas apontando que uma a cada quatro meninas já  deixou de ir à escola por conta do ciclo menstrual e a falta do produto de proteção íntima (absorvente).

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O levantamento encomendado pela fabricante de absorventes Always, em parceria com a  plataforma de pesquisa de mercado Toluna, no início de 2020, aponta ainda que, em média, 48% das jovens já tentaram esconder o motivo da sua ausência e 45% acreditam que o fato impactou negativamente o rendimento escolar.

“A pesquisa pode ser recente, mas o problema é antigo. Eu nunca cheguei a faltar a escola por conta disso, mas era de fato desconfortável e me sentia insegura e, apesar de eu não faltar, via muitas colegas que faltavam e diziam que estavam doentes. Para você ver, algo natural da mulher ser encarado como doença por falta de estrutura de vida, educação e questões sociais que implicam em algo tão íntimo, mas que não deve ser tabu. Ela existe e eu passei por isso”, ressalta Paola.

Outros dados

Segundo um relatório realizado pela Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), intitulado “Pobreza Menstrual no Brasil: Desigualdade e Violações de Direitos”, divulgado em maio deste ano, afirma que essa questão é consequência de fatores sociais e econômicos, o documento mostra que um a cada quatro brasileiros estão vivendo com menos de R$ 436,00 ao mês, consequentemente, interferindo de forma direta na escolha de produtos para consumo e o absorvente, além de outros itens necessários para manutenção da higiene íntima feminina.

O contraste entre a precariedade menstrual e a escassez de dados se mostra ainda mais preocupante se associado ao alarmante cenário brasileiro, que aponta para o fato de que cerca de 13,6 milhões de habitantes (cerca de 6,5% da população) vivem em condições de extrema pobreza, ou seja, sobrevivendo com menos de U$ 1,90 por dia (o equivalente a R$ 151,00 por mês segundo cotação vigente em 2019) e cerca de 51,5 milhões de pessoas estão abaixo da linha de pobreza (1 a cada 4 brasileiros vivendo com menos de R$ 436,00 ao mês).

A necessidade de enfrentamento da pobreza e redução das desigualdades incorpora urgência ao tratamento do problema da pobreza menstrual e seu impacto nas futuras gerações. Além dos efeitos intergeracionais de não garantir o direito à dignidade menstrual das meninas, há um impacto econômico imediato gerado pela falta de políticas públicas adequadas, que respondam à pobreza menstrual agora, enquanto as meninas, meninos trans e pessoas não binárias vivenciam sua adolescência, um momento decisivo para o seu desenvolvimento“, diz o relatório.

Absorvente externo, interno e coletor menstrual disponível no mercado (Reprodução/ Internet)

Outros dados a serem ressaltados são os publicados em novembro de 2020 no site Modefica, mostrando que, no Brasil, um dos principais motivos que impedem o acesso à proteção íntima é o preço, de acordo com Modifica, o imposto sobre o absorvente, corresponde, em média, a mais de 25% do valor do produto. (Deve ser levado em consideração a diferença de alteração de preço em cada região e os impostos calculados em cima do produto).

Em março deste ano, uma matéria publicada pela CENARIUM a respeito da pobreza menstrual no Brasil trouxe informações relevantes sobre o assunto. Entre os pontos ressaltados, consta a Pesquisa Nacional da Saúde Escolar (Pense) revelando (até o período em que matéria foi publicada) que 213 mil garotas são afetadas pelo não acesso aos produtos de higiene básica no período menstrual.

O material também abordava a exclusão social provocada pelo fenômeno resultando na evasão escolar, atrapalhando o desempenho e a carreira de jovens estudantes, dificultando até mesmo os afazeres do cotidiano, de acordo com o levantamento publicado em novembro de 2020, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Na ocasião, outra realidade apresentada pelo Pense ressaltou que 65% das jovens estudantes mais afetadas seriam negras. Os números seriam da última amostragem divulgada no dia 8 de março deste ano, pela ONG Girl UP, onde comprova que 30 milhões de mulheres menstruam no Brasil.

Perigos para a saúde

Além do conhecido paninho velho usado para substituir o clássico absorvente ou coletores menstruais (uma nova opção no mercado já aderido por muitas mulheres por ser uma alternativa que agride menos o meio ambiente dentre outros fatores), há também outros recursos improvisados como toalhas de papel, papel higiênico, meias e, em alguns casos, já foram relatados até mesmo o uso do “miolo do pão” ou pedaços de esponja introduzidos na parte íntima como a única forma disponível para substituir o produto básico de higiene.

“Acho que o famoso paninho, se limpinho, nem é tão agressivo, se olharmos para aquelas que já recorrem a itens mais agressivos para uma região tão delicada e propicia a pegar infecções se não cuidada corretamente”, comenta Paola.

E é justamente para a questão das possíveis infecções que o ginecologista e obstetra Thiago Gester alerta quanto ao uso indevido dos produtos não formulados para estes fins.

O uso indevido de objetos não íntimos podem desencadear infecções (Reprodução/Internet)

“Sabemos que fluxo sanguíneo é meio de cultura para fungos e bactérias, agora pense uma jovem introduzindo esses tipos de materiais na vagina, se expondo a possíveis infecções desencadeadas pela busca de uma alternativa que não é a correta”, frisa o médico ginecologista.

O relatório da Unicef, inclusive, alerta para os perigos dessa prática que ele denomina “negligentes”.

A negligência de necessidades menstruais resulta em problemas que poderiam ser evitáveis, desde alergias/irritações até aqueles que podem resultar em óbitos, como a síndrome do choque tóxico. O investimento adequado na saúde menstrual pode prevenir tais problemas“, informa o documento.

Políticas públicas e fatores sociais

No Amazonas, no último dia 22 de junho, o Governo do Estado anunciou o programa intitulado “Dignidade Menstrual”, no qual visa, minimizar os efeitos da “pobreza menstrual”. O programa pretende inicialmente atender 50 mil estudantes, em Manaus, e nos interiores do Amazonas.

O programa é especialmente voltado para meninas em idade menstrual, em situação de vulnerabilidade social, pobreza e extrema pobreza. A data prevista para o inicio da distribuição é em Agosto.  O “Dignidade Menstrual” vai trabalhar também na educação menstrual no âmbito escolar, “tanto para as estudantes em processo de desenvolvimento quanto para os profissionais da educação“, informou o texto divulgado nas mídias sobre a iniciativa.

Procurada pela equipe CENARIUM para saber se há algum levantamento sobre a temática, a assessoria de comunicação do Estado informou que ainda não há dados específicos sobre o assunto e nem sobre a falta de alunas nas escolas públicas.

De acordo com a assistente social Alessandra Sales, de 48 anos, políticas como estas trazem à tona uma pauta pouco difundida nas escolas. Ela alega uma atenção voltada somente para questões biológicas, porém não há a discussão de questões práticas. Para a assistente social, a iniciativa promove uma interação das escolas com alunas nesse período menstrual, diminuindo o índice de falta por problemáticas ligadas à menstruação.

“Imagine uma família que depende do Bolsa Família, por exemplo, tendo que prover pacotes de absorventes para duas, três, quatro meninas todo mês. Se ela recebe R$ 150,00 de auxílio, ela tem que tirar pelo menos R$ 50,00 reais para custear isso”, exemplifica a profissional.

Um dos principais motivos que impedem o acesso à proteção íntima é o preço, de acordo com o site Modifica ( Reprodução/ Internet)

Ela completa lembrando que a precariedade menstrual não se prende ao tão falado absorvente ou coletores, mas envolve um tema muito mais abrangente, como acesso à água encanada, banheiro disponível, produtos de higiene pessoal e até mesmo calcinhas em qualidades de uso para acomodar o item de proteção aliado à quebra de tabu ainda existente em torno do assunto.

“Acredito que seja uma oportunidade de contribuir para que as meninas deixem de faltar aulas por todos esse fatores e porque infelizmente a menstruação ainda é tratada como um tabu. Temos medo e vergonha de discutir e conversar. Às vezes, elas até têm o item, mas não o suficiente para se manter um determinado tempo na escola, não se sentindo confiante e podendo se sujar e aí são pequenas questões que acumulam e causam vergonha e constrangimento. Programas assim permitem mais segurança e acolhimento às meninas durante este ciclo”, completa a assistente social.

Ação social

Em Manaus, é possível encontrar algumas ações sociais para pessoas em vulnerabilidade social. No caso da universitária Camila Carmo Fernades, de 22, a pauta da precariedade menstrual foi o que motivou seu engajamento em prol de mulheres carentes.

Com a última ação realizada no Dia das Mulheres, a universitária de engenharia de produção está sempre atenta ao assunto e considera urgente programas destinados à saúde da mulher e adolescentes com ênfase no público de baixa renda e do interior.

Ação de entrega de absorventes para mulheres no Centro da cidade (Reprodução/ arquivo pessoal)

“Ainda estamos em passos lentos, mas acredito que seja um avanço as mídias abordarem assuntos assim mais abertamente. As pessoas e os nossos representantes precisam entender que isso é uma realidade. Chega de tabu, queremos dignidade para toda as mulheres e, principalmente, para as mulheres amazônidas. Acredito que a pandemia fez esse tema ressaltar e mais pessoas se atentarem que precisamos muito mais do que comida, precisamos de empatia, cuidados mínimos, mas que fazem toda diferença para um todo”, finaliza.

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