Não há festa onde há sangue: o silêncio mortal do Dia dos Povos Indígenas


Por: Inory Kanamari

18 de novembro de 2025

Ka tücüna naina.

Falo como advogada indígena, com anos de luta nos tribunais, nas aldeias e nas ruas. Falo como mulher originária, herdeira de um povo que resiste desde o primeiro dia da invasão deste território que hoje chamam de Brasil. Hoje, mais uma vez, nos pedem para celebrar o Dia Nacional dos Povos Indígenas, como se houvesse algo a ser comemorado enquanto nossos corpos continuam tombando, enquanto nosso território segue sendo violado, enquanto nosso espírito coletivo é alvo de um projeto contínuo e silencioso de extermínio.

Não há comemoração possível em meio ao sangue derramado dos nossos líderes, das nossas crianças, dos nossos anciãos. Seguimos sendo assassinados, física e simbolicamente, por políticas de Estado que se sustentam no racismo, na omissão e na mentira. O Marco Temporal, a omissão diante do genocídio Yanomami, o desmonte das políticas de proteção territorial, a criminalização de nossas lideranças: tudo isso faz parte de uma engrenagem de morte que o Brasil insiste em manter. E isso não é negligência. Isso é projeto.

Dói profundamente ver que quando uma liderança indígena é assassinada, o país se cala. A mídia tradicional silencia. A sociedade desvia o olhar. Fomos esquecidos antes mesmo de sermos ouvidos. A história do Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo em Brasília, foi tratada como um “erro de julgamento” por seus assassinos. Paulo Paulino Guajajara tombou protegendo sua floresta, e sua morte caiu no esquecimento em questão de dias. Quantos nomes mais precisaremos listar antes que sejamos vistos como humanos?

Enquanto isso, mortes de aliados não indígenas – como Bruno Pereira, Dom Phillips e Dorothy Stang – recebem holofotes internacionais. Não por acaso. Suas histórias, embora importantes, só são amplificadas porque falam a linguagem que o sistema entende. A dor do branco dói mais que a nossa. Isso é racismo estrutural, é colonialismo em pleno século XXI. E é preciso ter coragem para dizer isso em alto e bom som.

A pergunta que nos atravessa é simples e brutal: por que a morte de um indígena não comove o Brasil? Por que não há indignação nacional quando nossos parentes são mortos defendendo a terra que sustenta a vida de todos? Por que nossos gritos seguem ecoando no vazio?

Hoje, neste 19 de abril, quero lembrar que território, para nós, é corpo e é espírito. Não se trata apenas de terra — é vida, é continuidade, é existência. Quando arrancam nossa terra, matam nosso corpo. Quando destroem nossa cultura, silenciam nosso espírito. Essa é a trindade sagrada que nos constitui. Mas o Estado brasileiro insiste em violá-la, todos os dias.

O Brasil adora posar para o mundo como defensor da diversidade, como guardião da Amazônia, como parceiro dos povos indígenas. Mas sabemos que isso não passa de uma maquiagem mal feita. A verdadeira política praticada é a da invisibilidade, do silenciamento, do apagamento sistemático.

O que quero hoje não é parabéns, nem homenagens vazias. Quero verdade. Quero justiça. Quero memória viva para cada parente tombado. Quero que parem de fingir que respeitam nossos direitos enquanto nos matam lentamente com burocracia, violência e omissão.

Convido a sociedade brasileira a refletir com honestidade sobre sua própria cumplicidade nesse sistema. Enquanto vocês escolhem o que sentir, nós seguimos enterrando os nossos.

A luta pela vida indígena não pode ser lembrada apenas em discursos prontos. Ela precisa estar no centro das decisões políticas, dos investimentos públicos, das ações de justiça. O respeito real não se faz com hashtags nem com datas comemorativas. Se faz com demarcação de terras, com proteção efetiva, com escuta verdadeira.

Nós seguimos de pé. Seguimos existindo, resistindo. Mas a cada dia, o Estado brasileiro nos mostra que preferia que fôssemos apenas passado. E é exatamente por isso que resistiremos sempre. Porque viver, para nós, é o maior ato político.

Bapo ikoni. Até o próximo artigo.

(*)Inory Kanamari é a primeira advogada indígena do povo Kanamari e uma das vozes mais relevantes na defesa dos direitos dos povos originários. Palestrante com mais de 50 apresentações no Brasil e no exterior, já integrou comissões da OAB-AM e do Conselho Federal da OAB, e atualmente é membra consultora da OAB-RJ (2025-2027). Atuou como consultora no projeto do CNJ que traduziu a Constituição Federal para a língua Nheengatu e foi professora convidada da Escola de Verão da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá, em parceria com a Participedia.

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