Narrativas de uma mãe solo e os desafios enfrentados


Por: Elisiane Andrade

18 de novembro de 2025

Outro dia, conversava com Maria. Entre tantos assuntos e indagações, ela me relatou sua trajetória nos anos em que trabalhou como gari. Com um leve sorriso e a expressão de quem diz “ufa, nem sei como consegui”, ela disse-me:

Vi um anúncio de uma vaga de emprego para serviços gerais. Quando cheguei lá, soube que era para trabalhar como gari. Eu prontamente aceitei. Meu filho caçula tinha apenas 3 meses, havia nascido de parto cesariana. Minha cirurgia demorou a cicatrizar, ainda estava aberta, mas eu precisava trabalhar. Meus filhos não tinham o que comer. Eu precisava alimentá-los. Era um trabalho pesado. Para proteger a cirurgia que ainda não estava cicatrizada, eu fazia curativo, enrolava um pano sob a barriga, vestia uma cinta para ficar bem protegida, colocava o uniforme e seguia para o trabalho. Trabalhava no cabo da enxada, sob sol e chuva. Às vezes, sentia muitas dores, chegava a chorar, mas não desisti. Fiquei muito feliz quando recebi meu primeiro salário e pude comprar alimentos para meus filhos”.

Enquanto Maria contava esse episódio de sua vida, as lágrimas de sua filha, que estava ao seu lado, escutando atentamente, escorriam pelo rosto jovial.

Refletindo sobre a narrativa de Maria e a sobrecarga que recai sobre as mães solo, é importante lembrar que não podemos generalizar suas experiências, vivências e dores. Cada mãe solo enfrenta desafios únicos. As dificuldades financeiras, angústias, a sobrecarga física e emocional e o desamparo dessas mulheres são atravessados por questões de classe e raça, como podemos perceber na realidade de Maria, mulher negra, mãe de sete filhos, moradora de um bairro da periferia de Manaus, que precisa prover o sustento e segurar toda a carga de responsabilidade com os filhos, sozinha. Diante da fome, essa mulher não teve escolha, como nos lembra Carolina Maria de Jesus: “E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?”

Maria não tinha uma rede de apoio. Não tinha a quem pedir ajuda com alimentos, tampouco com quem deixar seus filhos para poder ir em busca do sustento deles. Essa condição retrata que a maternidade se torna ainda mais árdua. Restou a ela deixar seu filho de 3 meses, e os demais, sob os cuidados de uma das filhas, que na época tinha apenas 12 anos — a quem ela considera sua grande companheira.

Dos anos de experiências e aprendizados nos movimentos sociais, especialmente os de mulheres, posso dizer que algumas coisas, fruto das lutas das mulheres, têm melhorado. No entanto, também constato que essas pequenas melhorias ainda não alcançaram todas as mulheres. Por isso, a necessidade de enxergar as condições da mãe solo de acordo com o segmento social de cada uma

E, quando as mães solo são mulheres negras empobrecidas, a falta de acesso a serviços essenciais como creche, saúde, moradia, a sobrecarga de trabalho, a insegurança alimentar, a discriminação, a invisibilidade, ou seja, a total ausência de uma rede de apoio, torna-se ainda maior.

Ser mãe solo é enfrentar águas turvas, grandes banzeiros. É mergulhar em noites solitárias, nas dores mais profundas, nos cansaços. É caminhar entre os afetos, a ternura e as dores.

Maria, assim como tantas outras Marias, embrenhadas pelas periferias dos grandes centros urbanos, não é uma “guerreira”. Maria é uma sobrevivente, que está todos os dias no front. É uma mulher, mãe, estudante da EJA, que sonha em melhorar de vida por meio dos estudos. Uma mulher que ainda não perdeu a esperança de alcançar as melhorias tão merecidas.

Fica a reflexão: o quanto precisamos parar de romantizar a maternidade, de exaltar a figura da “guerreira” ou de enquadrar todas as mães solo nas mesmas experiências e/ou condições de vida. Precisamos dar a devida atenção para as desigualdades sociais que imperam sobre as mulheres. A história de Maria deixa um chamado para a escuta sensível e acolhedora.

(*)Elisiane Andrade é professora, graduada em Pedagogia, especialista em Gestão Pública, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e integrante do Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social em Gênero, Política e Poder (Gepos). Atua como ativista na Marcha Mundial das Mulheres.

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