Negligência urbana e desvio de função: a Câmara de Manaus e o falso protagonismo sobre a BR-319
Por: Lucas Ferrante*
19 de novembro de 2025Em 20 de junho de 2025, a Câmara Municipal de Manaus protocolou o Projeto de Resolução nº 006/2025, sob a propositura 2025.10000.10300.5.002639, de autoria do vereador João Paulo Janjão, criando uma “Frente Parlamentar em Defesa da BR-319” — uma rodovia federal, fora da alçada legislativa municipal. A justificativa da proposta é “promover estudos e articulações”, mas o texto não prevê a participação de órgãos ambientais, instituições científicas, universidades ou representantes das populações diretamente impactadas, como lideranças indígenas, ribeirinhas ou extrativistas. A ausência desses atores compromete qualquer alegação de diálogo democrático e pode configurar violação da Convenção 169 da OIT, que assegura o direito à consulta prévia, livre e informada para povos tradicionais, como já apontou o estudo publicado no periódico científico Land Use Policy.
Dois dias depois, em 22 de junho de 2025, uma mulher grávida e seu bebê morreram após cair com uma motocicleta em um buraco não sinalizado na avenida Djalma Batista — uma das principais vias da capital. O acidente, amplamente noticiado, expôs a negligência do poder público com a infraestrutura urbana básica, denunciada há meses por moradores sem qualquer resposta efetiva. Mesmo diante dessa tragédia, a Câmara seguiu alheia à sua responsabilidade primária: garantir segurança, mobilidade e qualidade de vida à população que a elegeu.
A criação da frente parlamentar escancara a dissonância entre as funções reais do Legislativo municipal e o teatro político que encena. Em vez de enfrentar os problemas visíveis nas ruas, como o buraco que matou mãe e filho, a Câmara propõe interferir em uma agenda que compete à União e que está no centro de uma das mais complexas disputas socioambientais do país. A BR-319 atravessa áreas de altíssima sensibilidade ambiental — incluindo terras indígenas, unidades de conservação e regiões com presença de povos isolados — e sua pavimentação descontrolada representa uma ameaça direta à governança ambiental da Amazônia, como demonstrou estudo publicado no periódico Environmental Conservation, editado pela Universidade de Cambridge.
Como cientista que atua há mais de dez anos na região e pesquisa os impactos da BR-319, afirmo que essa proposta é grave e simbólica. Governança ambiental exige respeito às atribuições legais, pareceres técnicos e mecanismos de consulta. Não se pode politizar uma rodovia que, na prática, vem servindo como corredor para grilagem de terras, garimpo ilegal e tráfico de drogas. Estudos conduzidos em parceria com o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM) mostram que a manutenção da BR-319 sem controle institucional já fortaleceu redes ilícitas e contribuiu para a perda de governança em territórios próximos a Manaus.
Além de ilegítima, a frente parlamentar é perigosamente enviesada. Sua criação, sem critérios técnicos claros e sem escuta dos setores mais afetados, revela um desvio de finalidade institucional que compromete não apenas a credibilidade da Câmara, mas também a integridade das políticas públicas para a Amazônia central. A cidade que não consegue cuidar de seus próprios buracos propõe-se a discutir o destino de uma das regiões mais biodiversas e sensíveis do planeta.
Enquanto isso, bairros inteiros de Manaus seguem sem arborização, sem saneamento básico, com transporte público precário e temperaturas cada vez mais elevadas por conta do fenômeno de ilha de calor. Dados do IBGE mostram que apenas 62,4% da população de Manaus têm acesso a esgotamento sanitário adequado, que a arborização das vias públicas é de apenas 23,9% e que somente 26,3% das vias da cidade contam com infraestrutura urbana básica — ou seja, pavimentação (asfalto, paralelepípedo, calçamento, etc.), guias e sarjetas, calçadas, drenagem de águas pluviais, iluminação pública, coleta de lixo, sinalização viária e meio-fio. Esse cenário precário contribui diretamente para a insegurança viária que, diariamente, ceifa vidas no trânsito da capital do estado do Amazonas. O foco da Câmara, no entanto, não está nesses problemas urgentes. Sua atuação demonstra mais interesse em pautas midiáticas do que em enfrentar a realidade urbana caótica da capital amazonense.
O mais alarmante, porém, é o risco sanitário representado pelo desmatamento descontrolado ao longo da BR-319, como demonstrado em estudos publicados nas revistas Nature, The Lancet Planetary Health e Journal of Racial and Ethnic Health Disparities. Estes estudos recentes indicam que o desmatamento e a abertura de ramais ilegais ao longo da rodovia estão expondo microrganismos até então isolados por barreiras ecológicas naturais. Trata-se de bactérias e vírus ainda desconhecidos pela ciência, com potencial zoonótico, que agora circulam por cadeias produtivas clandestinas sem qualquer controle sanitário. Um exemplo claro disso é a identificação de uma nova linhagem do vírus Oropouche, emergida no trecho central da rodovia BR-319 e posteriormente disseminada pelo Brasil, como demonstrado em estudo publicado na revista Nature Medicine por pesquisadores da Fiocruz. Esses dados, revisados por especialistas, demonstram de forma inequívoca que a pavimentação da BR-319 representa uma ameaça concreta à biossegurança nacional e global, com potencial para deflagrar futuras epidemias.
Diante de tudo isso, é preciso afirmar com clareza: a frente parlamentar em defesa da BR-319 não representa o povo de Manaus. Representa, sim, um esforço para legitimar cadeias de ocupação ilegal e exploração predatória. A cidade que ignora o luto das famílias atingidas por tragédias evitáveis não está em condições de decidir os rumos da Amazônia. Enquanto a Câmara se ocupa da rodovia, a capital afunda em omissão, fumaça e buracos. A pavimentação da BR-319, travestida de “desenvolvimento”, é, na verdade, o atestado de falência institucional de um poder legislativo que abandonou sua função pública em troca de palanque.