No Ceará, juíza cita Graciliano Ramos em decisão para afastar suspeitos de torturar presos
05 de julho de 2023
Cena do filme "Memórias do Cárcere" (1983), de Nelson Pereira dos Santos, adaptação de livro de Graciliano Ramos - (Divulgação)
Da Revista Cenarium*
MANAUS – “Lembrava o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão-do-mato. O relho, a palmatória, sibilando, estalando no silêncio da meia-noite, chumaço de pano sujo na boca de um infeliz, cortando-lhe a respiração. E nenhuma defesa: um infortúnio sucumbido, de músculos relaxados, a vontade suspensa, miserável trapo. Em seguida o aviltamento.”
Foi inspirada nesse testemunho de Graciliano Ramos, imortalizado na obra literária “Memórias do Cárcere”, que a juíza Luciana Teixeira de Souza, corregedora de presídios e titular da 2ª Vara de Execução Penal de Fortaleza, determinou o afastamento temporário de integrantes da cúpula de uma unidade prisional de Itaitinga, na região metropolitana, suspeitos de maus-tratos a detentos.
Cena do filme “Memórias do Cárcere” (1983), de Nelson Pereira dos Santos, adaptação de livro de Graciliano Ramos – Divulgação
A decisão foi tomada após a magistrada ouvir uma série de presos que relataram casos de violência na Unidade Prisional Agente Elias Alves da Silva. Essa é a mesma unidade onde a comissão da Defensoria do Ceará encontrou indícios de novas técnicas de tortura, com torção de testículos de presos e tormento batizado de “posição taturana”.
“A situação narrada pelos internos e mais o conjunto de elementos colhidos demonstram quão temerária se torna a permanência do corpo diretivo nas respectivas funções, seja no presídio da ocorrência dos fatos ou em qualquer outro do estado, até que se produzam as provas necessárias, esclareçam-se os fatos e não haja comprometimento à integridade de tantos internos”, diz trecho da decisão.
Entre os relatos de detentos supostamente agredidos na unidade está o de um homem que teve o maxilar quebrado e estava se recuperando no hospital quando foi ouvido pela magistrada, no último dia 16. Na ocasião, segundo o documento, “o preso se apresentava em estado físico bastante debilitado, ofegante e com dificuldade de expressar-se através da fala”.
“Eram visíveis a existência de hematomas na região do rosto, marcado com sinais e manchas arroxeados ao redor das bochechas e região dos maxilares, que recentemente passaram por cirurgia.”
A magistrada aponta no documento a série de supostas violações físicas e psíquicas narradas por ao menos dez internos. Ela faz um destaque sobre o relato da obrigatoriedade de os presos ficarem nus.
“Outra forma de constrangimento grave, como despir as pessoas privadas de liberdades, conforme relatado por vários internos, rememora práticas a abomináveis, próprias de período de exceção. Ainda que se alegue prática de procedimento em garantia a suposta ‘segurança’ da unidade, não se justificaria tamanho constrangimento e violação da dignidade.”
Presos caminham nus em unidade prisional de Itaitinga, no Ceará – Reprodução
Procurada pela Folha, a magistrada disse não poder comentar o caso específico, por em razão do sigilo. Falou, porém, da essência da decisão e dos argumentos utilizados de respeitos aos direitos humanos.
“O maior perigo que corremos é coisificar o ser humano. E nós, enquanto instituição, jamais podemos perder o norte do princípio crucial que deve nos reger, enquanto juízes, que a gente não pode se afastar, que é o princípio da humanidade”, disse ela à reportagem.
“Quando nós defendemos, tentamos proteger a dignidade de alguém, nós estamos protegendo toda uma sociedade. Nós não estamos passando a mão na cabeça de alguém que cometeu um crime. Ele está lá, pagando na forma que o nosso país escolheu que deveria ser pago, conforme a nossa legislação exatamente diz, perdendo apenas o direito de ir e vir, a liberdade, mas nenhum outro direito”, disse.
A decisão da magistrada foi conhecida no último dia 26, Dia Internacional de Luta contra a Tortura. Nessa mesma data, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, em palestra a advogados, em São Paulo, também falou sobre o combate à tortura no cárcere.
“Esse é um dos projetos principais do ministério, porque se a gente conseguir tratar as pessoas que estão nessa situação, com o mínimo de dignidade, é sinal de que a gente vai poder tratar as outras pessoas com mais dignidade. Então, para nós, essa é uma questão fundamental: lidar com as pessoas que estão no cárcere”, disse o ministro.
Secretaria diz repudiar atos
Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará afirmou que “repudia qualquer ato que atente contra a dignidade humana”. Diz receber visitas regulares de instituições fiscalizadoras e todos os casos suspeitos são investigados internamente e também encaminhados à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública.
A pasta também negou os novos tipos de tortura no sistema.
A gestão Elmano de Freitas (PT) ressaltou ainda o trabalho de ressocialização de presos no estado.
Diz que “a política de valorização da polícia penal do estado do Ceará passou por grandes transformações nos últimos anos” e que a pasta contratou mais de 1.000 novos agentes e elevou os salários em 40%.
“A SAP [Secretaria de Administração Penitenciária] nega as práticas apontadas, repudia qualquer tipo de conduta que ofenda seus servidores e comunica que, nos últimos quatro anos, a pasta ergueu um prédio próprio, equipado e completo para o cuidado transversal da saúde dos seus policiais e contratou profissionais de diversas áreas de atendimento”, diz em nota.
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