Nos EUA, jovens transgêneros têm direitos cerceados por leis

"Direitos trans são direitos humanos", diz cartaz em protesto em 2017 contra o anúncio do à época presidente dos EUA, Donald Trump, que planejava restabelecer a proibição de transgêneros servirem nas Forças Armadas (Foto: Carlo Allegri / Reuters / 26-7-2017)
Com informações do Infoglobo

EUA — Direitos de jovens transgêneros têm sido alvo constante de alas do Partido Republicano em mais de uma dúzia de estados dos EUA, em uma espécie de cruzada conservadora que antecede as eleições de meio de mandato, em novembro. Projetos de lei que visam à restrição de direitos LGBTQIA+ afetam áreas como a educação, saúde e esportes, atuando como angariadores de votos em meio à popularidade do tema entre os conservadores.

O ataque à educação sexual, no entanto, não é uma tendência inédita — tampouco nos EUA —, remontando aos anos 1980, como explica a pesquisadora e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Sonia Corrêa. Nos últimos anos, contudo, o foco ficou mais direcionado.

Leia também: ‘Seja bem-vindo’: J.K. Rowling comenta em perfil de usuário banido do Twitter por transfobia

PUBLICIDADE

“Antes, esse ataque era menos específico. A cruzada antigênero sempre teve muitos alvos, como a educação, casamento entre pessoas do mesmo sexo, feminismo, mas, nos últimos anos, a partir de 2018 para cá, o ataque passou a ser mais direto”, explica Sonia. “Essas forças estão transformando as pessoas trans em seres abjetos, como se não pudessem existir. Há agora um alvo muito específico contra uma população, e isso configura uma tendência de violações de direitos humanos muito mais graves.

“Direitos trans são direitos humanos”, diz cartaz em protesto em 2017 contra o anúncio do à época presidente dos EUA, Donald Trump, que planejava restabelecer a proibição de transgêneros servirem nas Forças Armadas (Foto: Carlo Allegri / Reuters / 26-7-2017)

Um exemplo da mais recente corrente conservacionista é a polêmica lei apelidada de “Don’t say gay” (“Não diga gay”, na tradução do inglês), da Flórida. Sancionada no fim de março pelo governador republicano Ron DeSantis, a lei já tem variantes em outros Estados americanos, que avançaram com propostas sob a prerrogativa de conceder aos pais mais “liberdade” para controlar a educação que os filhos recebem das escolas. 

Oficialmente chamada de “Lei dos Direitos Parentais na Educação”, a medida proíbe o ensino nas escolas públicas sobre orientação sexual e identidade de gênero, desde o jardim de infância até a terceira série do ensino fundamental, vetando também a discussão de tais temas “de forma que não seja apropriada para estudantes” — trecho apontado por ativistas como extremamente abstrato e suscetível a brechas de interpretação e aplicação. 

A medida enfrentou críticas em nível nacional, inclusive do presidente Joe Biden, que chamou a lei de “projeto odioso” em um tuíte em fevereiro. A represália não impediu, no entanto, a disseminação da proposta em outros estados.  

Em meados de abril, a Assembleia Legislativa do Alabama apresentou um projeto de lei semelhante ao da Flórida, mas abrangendo alunos até a quinta série. Ohio, Tennessee, Louisiana, Carolina do Sul, Missouri, Geórgia, Indiana e Kentucky seguem a tendência e também têm suas versões igualmente restritivas da lei.  

O material escolar também pode sofrer censura em alguns Estados americanos. Oklahoma quer proibir livros de bibliotecas escolares que deem enfoque ao “estudo de sexo, estilos de vida sexuais ou atividade sexual”, conforme descrito em um dos projetos de lei já aprovados pelo Senado. Caso seja sancionado, bibliotecários e professores ficariam proibidos de distribuir materiais ou discutir abertamente “qualquer forma de sexo não procriativo” e identidade de gênero.  

Em uma medida semelhante, os republicanos do Tennessee apresentaram um projeto que cita os materiais com tais conteúdos como “inapropriados”, pontuando que “a promoção de questões e estilos de vida LGBT nas escolas públicas ofende uma parcela significativa de alunos, pais e residentes com valores cristãos”. 

Sem acesso à saúde e aos esportes

Não é apenas a área da educação que está vulnerável as intervenções do tipo. Há cerca de um mês, o governador do Arizona, o republicano Doug Ducey, sancionou um projeto de lei que limita os direitos de atletas transgêneros no estado.  

A medida proíbe meninas e mulheres transgêneros de competirem em equipes femininas de escolas públicas, faculdades e universidades em todo o Arizona. Agora, as equipes atléticas precisam ser organizadas conforme “o sexo biológico dos alunos participantes”.

O Estado de Utah também aprovou, em março, uma proposta semelhante. Após ser vetada pelo governador republicano Spencer Cox, a Assembleia conseguiu anular a decisão e seguir com a lei, que deve entrar em vigor a partir do dia primeiro de julho.

O mesmo impasse ocorreu em Indiana, com o veto do governador republicano Eric Holcomb sendo anulado pelos deputados líderes do partido posteriormente. 

Geórgia, Iowa, Oklahoma e Dakota do Sul seguem a tendência e também já aprovaram ou sancionaram leis com as mesmas restrições. Já no Kansas e no Kentucky, as propostas foram vetadas pelos seus respectivos governadores, Laura Kelly e Andy Behear, ambos democratas.

Em 2021, o Arkansas foi o primeiro estado a proibir completamente o atendimento de afirmação de gênero para crianças trans. Seguindo o exemplo, o Alabama criminalizou recentemente a administração de bloqueadores de puberdade, terapias hormonais e cirurgias de redesignação sexual.  

“Se o bom Deus fez de você um menino, você é um menino, e se ele fez de você uma menina, você é uma menina”, afirmou a governadora republicana Kay Ivey em comunicado após sancionar a lei, no início de abril. 

No Texas, o governador republicano Greg Abbott emitiu uma ordem para investigar pais que prestam cuidados de afirmação de gênero a seus filhos transgêneros. Abbott comparou os tratamentos a “abuso infantil” e levou alguns profissionais de saúde a pausar ou restringir o atendimento a crianças transgênero. A ordem está sendo contestada na Justiça.

Revolução conservadora nos EUA

Até a eleição do ex-presidente republicano Donald Trump, a revolução conservadora americana ainda não tinha assumido contornos tão explicitamente contra a questão da identidade de gênero.

Marcada sobretudo pelo veto às pessoas trans no Exército e a proibição do uso de palavras que remetessem ao assunto em relatórios do Centro de Controle de Doenças (CDC), a política antigênero de Trump inflamou o discurso e reforçou a reconfiguração do pensamento conservador.

A pesquisadora Sonia Corrêa observa que, com a saída de Trump do governo, a direita dos EUA passou a transportar as batalhas do nível federal para o nível estadual — aos moldes das campanhas antiaborto, que também têm sido significativamente mais pautadas nas legislativos estaduais nos últimos meses.

Sonia ressalta que boa parte dos discursos e códigos ideológicos foram produzidos nos EUA e exportados para o restante do mundo, mas esse, em específico, fez o movimento contrário. Segundo a pesquisadora, a tendência de políticas antigênero surgiu em 2012 na Europa e América Latina. No Brasil, teve um salto em 2013 com campanhas contra o plano nacional de educação.

“No Brasil, onde a batalha contra o gênero na educação é a mais conflagrada no mundo, o debate é sobre o que chamam de ideologia de gênero e o marxismo”, diz a pesquisadora. “Já nos EUA, esse ataque aos direitos trans anda de mãos dadas com o ataque à teoria crítica racial [cuja abordagem do racismo como um problema estrutural nos EUA foi distorcida por parte da direita] . É uma dupla diferente, mas o pano de fundo é o mesmo.

Danos psicológicos

Se o ambiente escolar já é potencialmente hostil para minorias que enfrentam o preconceito diariamente, intervenções do tipo, que miram os direitos de crianças e jovens transgêneros, podem evidenciar problemas já enraizados e afetar ainda mais a saúde mental dos alunos, como mostra a Pesquisa Nacional de Clima Escolar, de 2019, publicada nos EUA.  

De acordo com o relatório, mais de 98% dos estudantes LGBTQIA+ já foram chamados por nomes pejorativos e homofóbicos na escola. Os dados também apontam que cerca de 33% dos estudantes dessas minorias, entre os 13 e 21 anos de idade, já faltaram às aulas no decorrer de um mês por se sentirem desconfortáveis ou inseguros. Mais de 77% dos estudantes que responderam à pesquisa disseram que já deixaram de comparecer a eventos extracurriculares pelos mesmos motivos, afetando o rendimento escolar.

Um relatório recente da ONG de prevenção ao suicídio apontou que jovens LGBTQIA+ que foram introduzidos ao assunto na escola tiveram 23% menos chances de tentar se matar. Em contrapartida, apenas 28% dos alunos foram apresentados ao tema durante as aulas. A menor taxa de aprendizado foi registrada na região Sul do país. A pesquisa foi realizada com quase 35 mil jovens americanos estudantes.

Em um país em que a tentativa de suicídio entre jovens LGBTQIA+ chega a um caso a cada 45 segundos, segundo a ONG The Trevor Project, o acesso ao debate sobre temas que discutam a orientação sexual e identidade de gênero é imprescindível, sobretudo em idade escolar.

“Quando se proíbe o assunto ou pessoas trans são proibidas de praticar esportes, de frequentar a sala de aula, de usar o banheiro correspondente ao gênero com o qual se identificam, isso é como uma morte”, explica a coordenadora do Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos da Uerj, Anna Paula Uziel. “É como se as pessoas não existissem. Para crianças e adolescentes, isso tem um impacto gravíssimo. Elas podem achar que a vida delas vale menos ou não vale nada”.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.