O século XXI na América do Sul começa com a crise exponencial do Estado-nação moderno devido às constantes mobilizações de bairros populares e povos indígenas que, desde a década de 1990, ocuparam as principais avenidas e praças dos centros urbanos. A promessa de desenvolvimento baseada em políticas de privatização e livre mercado gerou mais desemprego e pobreza, afetando especialmente setores camponeses, indígenas e afrodescendentes em países como Bolívia, Equador, Venezuela e Brasil. Esse cenário levou à reestruturação do modelo estatal neoliberal, dando origem a novos estados que, ao menos no plano normativo, buscavam representar os interesses das grandes maiorias historicamente excluídas. Nesse caminho, as constituições políticas do Equador (2008) e da Bolívia (2009) romperam com a concepção moderna de que “um Estado é igual a uma única nação”, definindo-se como Estados plurinacionais, ou seja, fundamentados na pluralidade de nações indígenas e afrodescendentes, cujos direitos políticos, civis e coletivos foram reconhecidos em igualdade hierárquica.
As mobilizações dos povos indígenas não apenas impulsionaram mudanças constitucionais, mas também promoveram a revalorização de suas próprias práticas e saberes como modelos estatais alternativos. Na Bolívia, o movimento indianista da década de 1970 já havia denunciado a existência de “duas Bolívias”: uma indígena, majoritária, mas explorada e discriminada, e outra branca, minoritária, mas detentora do poder. Posteriormente, o movimento katarista dos anos 1980 propôs a transformação do Estado-nação em um Estado plurinacional que reconhecesse a diversidade cultural, política e ontológica dos povos indígenas. No Equador, o levante indígena de 1990, liderado pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), exigiu a reforma do artigo 1 da Constituição para estabelecer um Estado plurinacional.
A articulação entre mobilizações e produção teórica levou à sistematização de conceitos como o Sumak Kawsay (Buen Vivir) no Equador e o Suma Qamaña (Vivir bien) na Bolívia. Essas ideias emergiram como alternativas ao paradigma de desenvolvimento ocidental baseado no extrativismo e no crescimento ilimitado. No entanto, mais de uma década após a implementação do Estado plurinacional na Bolívia, a concretização do Vivir Bien (Bem Viver) na prática gerou debates críticos sobre seu verdadeiro alcance e aplicabilidade.
Como compreender o Bem Viver na Bolívia?
Desde que Evo Morales assumiu a presidência da Bolívia em 2006, o conceito de Bem Viver tornou-se um pilar discursivo do governo e uma categoria central no marco do Estado plurinacional. Sua incorporação na nova Constituição Política do Estado (CPE) em 2009 foi um marco histórico, ao incluir pela primeira vez esse princípio filosófico indígena em um texto constitucional. No entanto, sua evolução nas últimas décadas tem sido objeto de diferentes interpretações, apropriações e tensões entre os setores que reivindicam seu significado original e aqueles que o instrumentalizaram dentro do aparato estatal.
O pesquisador Anders Burman (2017) apontou que o Bem Viver na Bolívia pode significar “tudo ou nada”, pois é uma categoria que permite múltiplas interpretações. Para alguns setores, trata-se de um horizonte civilizatório alternativo ao modelo antropocêntrico e desenvolvimentista do mundo ocidental, baseado na reciprocidade, na harmonia com a natureza e na vida comunitária. Para outros, o Bem Viver foi apropriado por acadêmicos e elites não indígenas, que o reformularam em termos abstratos, despojando-o de sua dimensão política original. Por fim, há uma visão crítica que argumenta que o Bem Viver foi utilizado pelo governo de Evo Morales como um discurso legitimador de suas políticas extrativistas, em contradição com os princípios ecológicos e comunitários que dizia representar.
No entanto, a instrumentalização do Bem Viver não deve nos fazer esquecer que sua origem está ancorada em uma longa tradição política indígena. No contexto andino, essa categoria surge a partir do termo aymara Suma Qamaña, que, em sua tradução mais simples para o espanhol, significa ‘Vivir Bien’. No entanto, em seu sentido mais profundo, representa um paradigma filosófico e político. Desde a década de 1990, intelectuais indígenas aymaras do movimento katarista, como Simón Yampara e Mario Torrez, trabalharam na sistematização desse conceito, vinculando-o aos processos de reconstituição dos ayllus (categoria aymara que se refere à organização social e cosmológica ligada ao território) e à luta pela autodeterminação dos povos indígenas. Nessa concepção originária, o Suma Qamaña não se limita ao bem-estar humano, mas abrange a totalidade da vida, incluindo as montanhas (apus), os espíritos ancestrais (achachilas), a biodiversidade e as comunidades humanas dentro de um mesmo tecido de interdependência.
A mudança discursiva e política do Suma Qamaña para o Bem Viver ocorre em um contexto de expansão do neoliberalismo e das políticas multiculturais na Bolívia. Em 1993, com a chegada de Gonzalo Sánchez de Lozada à presidência e de Víctor Hugo Cárdenas (primeiro vice-presidente indígena e membro do movimento katarista), promove-se um multiculturalismo estatal que, embora reconhecesse formalmente a diversidade cultural, esvaziou de conteúdo político as lutas indígenas. Foi nesse período que o Suma Qamaña começou a circular nos espaços urbanos e acadêmicos, chegando aos bairros residenciais de La Paz e sendo traduzido para o espanhol como “Vivir Bien”. No entanto, essa tradução também implicou uma transformação e um enfraquecimento de seu significado original, pois deixou de ser um conceito de resistência política para se tornar uma ideia romantizada e mistificada sobre a “sabedoria indígena”, muitas vezes desconectada de suas práticas comunitárias concretas.
Esse Bem Viver reinterpretado e domesticado foi o que acabou sendo adotado pelo governo de Evo Morales, que o integrou em seu discurso político e no desenho de suas políticas públicas. Ao longo de sua gestão, o Bem Viver foi promovido como um princípio norteador do Plano Nacional de Desenvolvimento, utilizado em campanhas estatais e até vinculado a iniciativas extrativistas justificadas como necessárias para o bem-estar coletivo. Essa apropriação governamental gerou um debate profundo: o Bem Viver é um horizonte civilizatório alternativo ou um slogan instrumentalizado para encobrir contradições estruturais do modelo estatal?
O Bem Viver continua sendo um conceito em disputa. Enquanto alguns atores políticos o instrumentalizaram como um discurso de legitimação estatal, outros setores indígenas e acadêmicos críticos continuam reivindicando-o como uma alternativa ao capitalismo e ao extrativismo. Essa tensão evidencia que seu significado não está fechado nem consolidado, mas segue sendo um terreno de luta.
Além das contradições e apropriações estatais, o desafio contemporâneo reside em repensar o Bem Viver a partir de uma perspectiva crítica e descolonizadora, que vá além do discurso e se traduza em práticas concretas de autonomia, sustentabilidade e justiça social. Para isso, é fundamental resgatar seus sentidos locais e comunitários—ou seja, voltar ao Suma Qamaña—e evitar que se transforme em um slogan vazio ou em uma ferramenta de reprodução do modelo extrativista que, paradoxalmente, pretendia superar. Em última instância, o futuro do Bem Viver dependerá de sua capacidade de articular-se com as lutas cotidianas das comunidades indígenas e de desafiar as estruturas de poder que tentaram domesticá-lo. Somente assim ele poderá recuperar sua essência transformadora e consolidar-se como um horizonte político real e vigente para a nossa região.
(*)Advogado Aymara da Bolívia. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Atua como pesquisador e consultor jurídico, abordando questões relacionadas à crítica jurídica, justiça indígena, estados plurinacionais, direito agroambiental, movimentos políticos indígenas e mídia. Faz parte do Coletivo de Estudos Latino-Americanos de Barcelona (Celab).