O boi incendiário: entenda motivo pelo qual o Pantanal queima e seca


01 de julho de 2024
O boi incendiário: entenda motivo pelo qual o Pantanal queima e seca
Fogo consome áreas verdes do Pantanal (Imagem gerada por Inteligência Artificial (IA)/Weslley Santos/CENARIUM)
Lucas Ferrante – Especial para Cenarium**

Nesta semana, o Pantanal registrou um novo recorde de queimadas, mobilizando a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a ir à região para lidar com a crise. As recentes queimadas no Pantanal têm gerado grande preocupação, e especialistas apontam que a expansão da pecuária e a introdução de gramíneas exóticas são fatores críticos que contribuem para essa tragédia ambiental. A presença do gado e expansão das pastagens exóticas tornam o bioma mais suscetível a incêndios, agravados pelas mudanças climáticas. Preocupantemente, um estudo recente que avaliou a evolução da cobertura de água no Brasil de 1985 a 2023 revelou que o Pantanal foi o bioma que mais secou nesse período. Em 2023, a superfície de água anual do Pantanal foi de 382 mil hectares, 61% abaixo da média histórica.
A mobilização da Ministra do Meio Ambiente reflete a urgência de ações concretas para combater as queimadas e proteger o Pantanal, um dos biomas mais ricos em biodiversidade do mundo. A adoção de políticas baseadas em evidências científicas é crucial para mitigar os impactos da pecuária e restaurar áreas degradadas, garantindo a sustentabilidade e a preservação desse ecossistema vital. Um boletim publicado em 28 de junho pelo Ministério do Meio Ambiente destacou que todos os incêndios florestais no Pantanal têm origem humana, contrariando a afirmação de falsos especialistas de que o fogo faz parte do ciclo natural do bioma.

Apesar da crise ambiental, o lobby dos ruralistas continua a insistir em projetos de lei que enfraquecem a proteção do bioma. Um exemplo é a Lei 11.861/22, que permite a pecuária em áreas protegidas do Pantanal. Este lobby já foi mencionado aqui na Cenarium, destacando que representantes do setor agropecuário forneceram informações falsas nas audiências públicas que discutiram a lei.

Incêndio Florestal no bioma Pantanal (Reprodução/Agência Brasil)

Como pesquisador, no ano retrasado, denunciei ao Ministério Público do Mato Grosso a necessidade de revogação dessa lei. Atualmente, a decisão de revogar a Lei 11.861/22 está nas mãos do desembargador federal Márcio Vidal. Representantes do agronegócio, que solicitaram sua inclusão como amicus curiae no processo, pediram uma audiência de conciliação. No entanto, isso é ridículo, pois, do ponto de vista técnico, a lei não tem fundamentação real.

É consenso entre pesquisas científicas revisadas por pares, incluindo um artigo publicado por mim e pelo renomado cientista Philip Martin Fearnside na revista Science, que a pecuária é a principal vilã do Pantanal. Então, por que leis como a Lei 11.861/22 ainda são propostas? A resposta está nos massivos financiamentos do agronegócio para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Esses recursos são destinados à produção de documentos que distorcem os fatos científicos, criando uma narrativa favorável ao agronegócio em detrimento do meio ambiente. Desde 2018, a Embrapa recebeu mais de 145 milhões de reais do agronegócio brasileiro e, em contrapartida, emitiu “notas técnicas” não científicas alegando absurdamente que o gado poderia atuar como um bombeiro do Pantanal.

Imagem aérea mostra incêndio em Pantanal (Reprodução/Agência Brasil)

No dia 16 deste mês, a promotora de justiça Ana Luiza Avila Peterlini de Souza, da 15ª Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Cuiabá-MT, solicitou formalmente que eu avaliasse o conjunto de notas técnicas da Embrapa que embasaram a Lei 11.861/22. Em resposta, enviei uma nota técnica contendo um conjunto de estudos revisados por pares e publicados em periódicos científicos especializados, demonstrando a falácia das argumentações apresentadas nas notas técnicas da Embrapa, incluindo a ideia estapafúrdia e fraudulenta do “boi bombeiro”.

Abaixo, podemos acompanhar o resumo de alguns estudos sérios que demonstram como a pecuária e a expansão das pastagens exóticas têm afetado o Pantanal:

Perda da biodiversidade do Pantanal

A introdução de gramíneas exóticas no Pantanal tem causado impactos significativos na biodiversidade desse bioma tão importante e vulnerável. O uso de espécies como a Urochloa humidicola para pastagem de gado tem alterado drasticamente a composição da vegetação, levando à perda de biodiversidade e aumentando a suscetibilidade do Pantanal a incêndios e mudanças climáticas. A Urochloa humidicola, uma gramínea exótica altamente tolerante a inundações, foi introduzida no Pantanal para pastagem de gado. Essa espécie tem raízes adventícias que permitem seu domínio em áreas durante períodos de seca, enquanto as espécies nativas enfrentam dificuldades para crescer. Esse domínio resulta em uma diminuição significativa da diversidade florística, uma vez que a U. humidicola suprime a germinação e o estabelecimento de outras espécies. Durante a estação seca, a cobertura de U. humidicola aumenta, homogeneizando as comunidades vegetais e reduzindo a variabilidade e a riqueza das espécies nativa. Essa mudança não afeta apenas a estrutura das comunidades vegetais, mas também as funções ecossistêmicas essenciais para a saúde do Pantanal.

O impacto na fauna e no solo

A presença de gado no Pantanal, associada à expansão de gramíneas exóticas, também tem efeitos devastadores sobre a fauna local. Estudos indicam que o gado age como um “engenheiro do ecossistema”, removendo a serapilheira que serve de abrigo e locais de reprodução para diversas espécies de anuros e outras criaturas dependentes desses microhabitats. Além disso, o pisoteio causado pelo gado compacta o solo, especialmente nas margens dos corpos d’água, destruindo habitats cruciais para a reprodução de girinos de anuros. Essa compactação do solo também contribui para a erosão e perda de solo, um problema significativo que agrava ainda mais a vulnerabilidade do Pantanal às mudanças climáticas, perda de água e incêndios.

Incêndios e mudanças climáticas

As mudanças climáticas antrópicas projetadas para 2100 indicam que o Pantanal é o bioma brasileiro mais vulnerável. A combinação de incêndios induzidos pelo homem e a intensificação dos fatores de queima devido ao aquecimento global criam condições ideais para a propagação de fogo, comprometendo a integridade do bioma. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) mostram que os incêndios no Pantanal aumentaram 200% em relação a anos anteriores, consumindo cerca de 23% do bioma até novembro de 2020. Esses incêndios são frequentemente associados à prática de queimadas por pecuaristas para favorecer o crescimento de pastagens exóticas, o que exacerba ainda mais a situação.

A ameaça das políticas inadequadas

A Lei nº 11.861/2022, aprovada pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso, permite a presença de gado em Áreas de Preservação Permanente (APPs) e reservas legais, contrariando recomendações científicas que apontam os danos causados pela pecuária nessas áreas. Estudos científicos revisados por pares demonstram que o gado altera a composição e a riqueza de espécies, fragmenta habitats e causa erosão do solo. A presença de gado nas Áreas de Preservação Permanente favorece espécies generalistas em detrimento das especialistas de habitat, resultando em mudanças na composição da fauna local e perdas de biodiversidade e serviços ecossistêmicos. A manutenção dessa lei, baseada em publicações que não passaram por revisão por pares, abre brechas para impactos ainda maiores sobre o bioma.Para proteger o Pantanal, é essencial que o judiciário revogue a Lei nº 11.861/2022 e que as decisões sejam baseadas em literatura científica revisada por pares. A adoção de medidas de manejo que priorizem a integridade do bioma e a restauração de áreas degradadas é crucial para garantir a sustentabilidade do Pantanal e a preservação de sua biodiversidade única.

A conservação do Pantanal requer um compromisso contínuo com a ciência e a implementação de políticas que respeitem a ecologia do bioma, protegendo-o das pressões da pecuária e da introdução de espécies exóticas. Somente assim poderemos garantir que esse ecossistema vital continue a prosperar, fornecendo serviços ecossistêmicos essenciais para a região e para o mundo. Precisamos nos lembrar, o agro não é tec, o agro não é pop, o agro financiou a destruição do Pantanal e agora deve pagar sua recuperação!

Leia também: O agro é tóxico e não poupa ninguém
(*) Lucas Ferrante é biólogo e pesquisador, mestre e doutor em Biologia e Ecologia, coordenou a publicação no periódico científico Science, apontando a inviabilidade e ilegalidade da lei 11.861/22 e autor da denúncia no Ministério Público requisitando a revogação da lei. Atualmente é o pesquisador brasileiro que concentra o maior número de publicações nos periódicos Science e Nature, os dois maiores e mais importantes periódicos científico do mundo.
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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