O Dia Internacional da Democracia e o Estado Democrático de Direito Brasileiro


Por: Walmir de Albuquerque Barbosa

23 de novembro de 2025

O clássico A Democracia na América (1835), de Alexis de Tocqueville, é o primeiro relato completo
da mais nova experiência de governo, de estado e de consagração dos princípios incarnados pelo
Iluminismo e referendados pela Revolução Americana (1776) e pela Revolução Francesa (1789). Já
na introdução, o autor assim se expressa: “à medida que estudava a sociedade americana, via cada
vez mais, na igualdade de condições, o fato essencial, do qual parecia descender cada fato particular,
e o encontrava constantemente diante de mim, com um ponto de convergência para todas as minhas
observações…Uma grande revolução democrática acha-se em curso entre nós; todos a vêm; nem
todos, no entanto, a julgam da mesma maneira. Consideram-na uns como coisa nova e, tomando-a
por um acidente, esperam ainda detê-la, ao passo que outros a julgam irresistível, porque se lhes
afigura o fato mais contínuo, mais antigo e mais permanente já conhecido na história”

(TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo:
Ed. da USP, 1977, p.11).

A democracia nos Estados Unidos da América, como forma de governo,
funcionando em sua plenitude institucional, era naqueles tempos a novidade que influenciou e
continuaria a influenciar os novos países que emergiam dos sistemas coloniais decadentes. Mas, é
preciso lembrar, também, que esse princípio da igualdade, tão alardeado por todos na nova República,
não incluía os escravos negros e indígenas, deliberadamente excluídos como parte da nação ou
colocados em condição de inferioridade, contrariando, assim, os preceitos fundamentais da
Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Em todo o Continente Americano, a escravidão e o trabalho escravo continuaram na base dos
processos produtivos e a propriedade dos escravos um direito incontestável dos seus senhores, que os
tinham como bens integrados a seu patrimônio. A escravidão, que havia sido abolida nas colônias
francesas em todo o mundo, foi restaurada por Napoleão Bonaparte e países surgidos nesse
movimento, como o Haiti, foram obrigados a pagar aos antigos proprietários de escravos indenizações
pesadas.

Como se vê, o cerne dos problemas com os quais ainda nos debatemos, representados na
desigualdade econômica, social, “racial” e no descumprimento dos tratados que consagram a
igualdade e as garantias dos direitos fundamentais a todos os humanos mesmo inscritos nas
Constituições dos países, persiste como sendo os nossos maiores dilemas e fonte de sofrimentos,
vilanias e genocídios, que comprometem a Democracia em seu sentido pleno. Uma democracia para
uns poucos, pela metade, não é democracia.

Por mais conquistas obtidas em vários países, iniciando com a abolição do Trabalho Escravo, o fim da imposição de religiões oficiais e prevalência da laicidade do Estado, o reconhecimento formal dos direitos civis ao lado da igualdade de gênero, do direito de voto às mulheres e acesso de todos aos demais direitos civis, tais conquistas, no cotidiano, ainda são relativas, não universais. Constantemente nos deparamos com a supressão ou suspensão de garantias democráticas por medidas discricionárias ou autoritárias. Essas violações atingem, fundamentalmente os direitos humanos, pilares da democracia.

Por causa desses sinais invertidos em nossos tempos, não soa estranha a afirmação de Guy Debord, ao escrever o verbete ABOLIR para o décimo primeiro fascículo da Encyclopédie des Nuisances (Enciclopédia das Nocividades, 1984-1992):“A Revolução Francesa aboliu legalmente os privilégios da nobreza e do clero para fundar a igualdade civil burguesa. O século XIX aboliu a escravização nas colônias, que dependiam das potências europeias e, mais tarde (não sem resistência), nos EUA. O programa revolucionário que, evidentemente, encontraria resistência mais duráveis, se propunha desde aquele momento a abolir o Estado, as classes, a mercadoria etc. Certos pontos desse programa já foram, de algum modo, realizados, entretanto ao revés, pelo progresso da contra revolução neste século (refere-se ao sec. XX, adendo nosso), efetivamente abolindo muito daquilo que existia e sempre na perspectiva e
prática do controle absoluto…Deste modo, a fútil ideologia dos ‘direitos do homem’ não é outra coisa
senão um epitáfio sobre o túmulo de tudo aquilo que todos os estados enterraram”
(Abolir. São Paulo:
Subinfluência Edições, 2021, p. 9).

Com a vitória do capitalismo sobre todos os modos de produção, do liberalismo exacerbado e do processo de globalização proporcionado pelas novas tecnologias, os individualismos sobressaíram como formas das contradições e paradoxos que marcam o século XXI, permitindo que aquelas forças ideológicas, que pensávamos vencidas, como o fascismo e o nazismo, voltassem a ameaçar as estruturas do sistema democrático, que em mais de dois séculos buscou-se construir, aprimorar e sustentar como modelo prevalente. Se esse fenômeno vem emergindo nas democracias consolidadas, afeta com maior grau aquelas que ainda buscavam chegar lá.

Os países independentes do sistema colonial tomaram o ideário burguês e a sua ideologia
liberal como modelos de organização e sujeitaram-se a um novo Contrato Social mudando as
relações econômicas, políticas e sociais, que deram lugar ao Estado Direito comportando as garantias
de que acima falamos e que se referem aos direitos civis e políticos. No entanto, a superação dos
dilemas decorrentes da supressão de direitos e das desigualdades não poderiam realizar-se em
plenitude nesses países, visto que a burguesia neles nascente assenhoreou-se do Estado e não conferiu
a mesma igualdade que lhe foi dada como nova classe social, lá no passado, à classe trabalhadora.

Os embates, ou a luta de classes, como se queira chamar, redundaram em tentativas avançadas em busca
de uma sociedade mais justa, mas nem sempre alcançada devido ao poderio acumulado dos donatários
do poder. Quando se fala em sociedade do bem-estar social estamos falando do máximo de conquistas
alcançadas e nem sempre permanentes, sobretudo quando subsiste a desigualdade econômica, que se
torna, também, desigualdade social.

O capitalismo avançado, globalizado e vitorioso pelo fortalecimento das novas tecnologias reais e virtuais resulta da potencialização da reprodução concentrada do capital, o capitalismo financeiro, que se distancia de quase todos os princípios consagrados no ideário liberal que o inspirou, visto que para sua reprodução ampliada não depende exclusivamente da classe operária nem do seu ideário como motor da luta de classes, o socialismo, que sempre buscou combater. Com as suas teorias conspiratórias, com os seus mitos fantasmagórico ou messiânicos; com seu desprezo pelos pobres a quem acusa de preguiçosos e ineficientes porque não se entregam por inteiro às teorias da prosperidade e aos desígnios da meritocracia.

Desse modo, põe em risco, onde pode se impor, a sociedade do bem estar social e ao seu correspondente jurídico: o Estado Democrático de Direito, que congrega as vitórias sociais contra a barbárie, tornando-se, assim, nos nossos tempos, a condição sine qua non de uma sociedade mais justa. E a ideia de “sociedade mais justa” não pode e não deve se circunscrever a uma busca metafísica, tem que ser real, porque é mais que necessária, pois a sociedade tornou-se mais diversa em função das conquistas, das novas necessidades concretas da convivência humana entre si e com a natureza, das transformações operadas pela cultura e pelas liberdades individuais e coletivas. E aqui me escoro num grande pensador e propugnador dessa sociedade justa que é John Rawls: “basta assinalar que, numa
sociedade marcada por profundas divisões entre concepções do bem contrapostas e incomensuráveis
entre si, a teoria da justiça como equidade nos permite pelo menos conhecer a maneira como a
unidade da sociedade poderia ser ao mesmo tempo possível e estável”
(RAWLS, John. Justiça e
Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 241).

O Brasil, desde a sua independência, vem construindo um escopo de Nação, de Estado e de
Governo com progressos lentos. Não seguindo o modelo de Estado Republicano tal qual os EUA, no
seu nascedouro, optou pela Monarquia Constitucional, mas a nossa primeira Constituição (1824) foi
outorgada pelo Imperador, muito limitada na garantia de direitos: exclusão dos negros escravizados,
cidadania de segunda categoria para os povos originários e para as mulheres, participação com voto
apenas de proprietários, Religião Católica como religião oficial do Estado, um poder moderador
exercido pelo Imperador acima dos demais poderes, privilégios à nobreza e às castas militares, etc.
Razão pela qual não podermos falar de forma de governo democrática, pois não se fundava
exclusivamente na vontade do povo.

A democracia só aparece mais nítida, com definições e ações concretas no pós II Guerra Mundial, na Constituição Federal de 1946. Somente aspiramos à democracia plena, com a Constituição Federal de 1988, depois de sofrimentos irreparáveis na Ditadura Militar e do atraso que ela nos impôs. “O Estado democrático de direito ou democracia constitucional, no Brasil como em outras partes do mundo, combina elementos da matriz liberal e da matriz democrática do pensamento político. Do liberalismo vêm categorias como o Estado de direito, separação de Poderes, direitos individuais, livre iniciativa, pluralismo político. Da democracia vêm a soberania popular, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o reconhecimento do valor social do trabalho” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 11ª. Edição, 2023, 479-480).

E mais adiante, na mesma obra, nos fala das três dimensões da democracia: representativa, expressa no voto universal e como protagonistas o Congresso Nacional e o Presidente da República; a dimensão constitucional, centrada nos direitos fundamentais, com o protagonismo do Poder Judiciário, tendo como cúpula o Supremo Tribunal Federal; e, por última, a democracia deliberativa, onde prevalece o debate público das questões que podem interessar e influir nas decisões públicas (p. 480).

Como não estamos na Grécia Antiga, onde nasceu o modo democrático de governar e que tinha na Ágora (a praça pública) o espaço discursivo onde os cidadãos podiam opinar sobre a coisa pública, em nossos tempos, a ágora é representada pelas associações civis públicas, pelos grupos organizados de defesa de direitos difusos, por órgãos de categorias como sindicatos e associações patronais ou de categorias profissionais, ONGs, imprensa convencional (aberta e por assinatura) e, sobretudo (mesmo com todas as ressalvas que possamos fazer), pelas redes sociais ancoradas na Internet. E fechando as mazelas que podemos considerar como inimigas da democracia, Luiz Roberto Barroso, atualmente ocupando o cargo de Presidente do STF, situa: a apropriação do Estado por elites extrativistas; a pobreza extrema e as desigualdades injustas; e o sentimento de pertencimento, este prejudicado pelos demais, causando um “desencontro entre os cidadãos e a política” (p.493).

Barroso está certo quando chama a atenção sobre os desencontros entre os cidadãos e a política
como danosos à democracia e é deles que precisamos falar e sobre eles refletir muito. Manuel Castells
é um entre tantos outros intelectuais da segunda metade do século XX que exaltou a Internet como
uma esperança de Democracia Direta, onde esse sentimento de pertencimento poderia realizar-se:
cidadãos em rede participando ativamente da vida pública. Ele escreveu A Galaxia da Internet:
reflexões sobre a Internet, os Negócios e a Sociedade
(Rio: Jorge Zahar Editores, 2003) e Redes de
Indignação e Esperança: movimentos sociais na era da Internet
(Rio: Zahar, 2013). Entretanto,
em 2017, depois que as Primaveras, como foram chamados os movimentos sociais intensos que
derrubaram ditaduras em decadência e governos fortes arrefeceram, muitos deles se converteram em
novas castas autocráticas e moralistas, anti-estado, anti-política.

Castells vem a público fazer a sua denúncia contundente numa obra seminal nominada de “Ruptura: a crise da democracia liberal” ( Rio: Zahar, 2018). Nela, o autor trata da crise da legitimidade política levada ao paroxismo da desconexão entre representação e poder político; do terrorismo global e a política do medo; e da rebelião das massas e o colapso de uma ordem política. Tudo isso constitui uma reflexão tempestuosa a partir dos fatos ocorridos em países do Norte da África, na Espanha, e que se juntam aos movimentos que vinham atuando na Polônia, na Itália, na França, no Reino Unido, na Hungria e nos EUA
(Trumpismo e supremacismo branco) e, posteriormente à publicação da obra, no Brasil (O Bolsonarismo) e, agora, na Argentina (Milei), Portugal, Alemanha e na França.

Países onde as forças políticas de extrema direita se apossaram da Internet e dela fizeram uso para a sua propaganda ideológica e chegaram ao poder ou expandiram o seu espaço político de doutrinação. Todos eles, no fulcro, trazem a pregação de uma nova ordem social passadista, que une ideias fascistas, nazistas,
teorias da conspiração retrógradas e quase medievais, além do autoritarismo político, do moralismo
nos costumes, abolição de direitos, em nítida oposição a tudo que é defendido pela Democracia.

E tudo isso evocando o preceito liberal deturpado da Liberdade de Pensamento e de Expressão, um
dos esteios dos direitos fundamentais. Castells é incisivo: “enquanto as elites triunfantes da
globalização se proclamam cidadãs do mundo, amplos setores sociais se entrincheiram nos espaços
culturais nos quais se reconhecem e nos quais seu valor depende de sua comunidade, e não da sua
conta bancária. A fratura social se une à fratura cultural. O desprezo das elites pelo medo das
pessoas de saírem daquilo que é local sem garantia de proteção se transforma em humilhação. E aí
se aninham os germes da xenofobia e da intolerância. Com a suspeita de que os políticos se ocupam
das coisas do mundo, mas não das pessoas. A identidade política dos cidadãos, construída a partir
do Estado, vai sendo substituída por identidades culturais diversas, portadoras de sentido para além
da política”(Ruptura, p. 20). É um discurso disruptivo ao qual não estávamos acostumados, que
“pressupõe a separação entre opinião e identidade próprias. As pessoas que não têm essa capacidade
discursiva aderem de modo desesperado à sua opinião, pois senão ficariam ameaçadas de perderem
sua identidade. Por esse motivo, a tentativa de dissuadi-las de suas convicções está condenada ao
fracasso…a crise da democracia é, antes de mais nada, uma crise da escuta atenta”
(HAN, ByungChul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Petrópolis: Vozes, 2022, p.53).

Quando os ouvidos cerram-se para impedir a reflexão e o entendimento, ouve-se apenas as vozes daqueles que se autoproclamam como “mitos”, entidades nacionais ou supranacionais, dando coerência ao pacote ideológico da extrema direita em cada lugar do mundo, com tons diferenciados, conforme os
interesses vigentes.

Daí a atenção a ser dada às particularidades dos discursos proferidos e ficarmos atentos para
ouvi-los, compreendê-los e não cair em suas armadilhas. Parafraseando Friedrich Nietzsche (Ecce
Homo: Além do bem e do mal, aforismo n. 2), quem entende de anzóis, sabe muito bem que quando
ninguém se deixou iscar, a culpa não é do pescador, faltaram peixes! A democracia não é um bem
somente necessário, é um bem inestimável, daqueles que só podemos pensar em aperfeiçoar, mas
nunca perder!

(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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