O Estado-Nação Indígena
Por: André Lopes
19 de novembro de 2025O Estado-Nação se trata de uma invenção europeia que se desenvolveu em um longo processo entre os séculos XIII e XIV. A partir do século XVI começou a se expandir para todos os continentes. Hoje são 193 Estados independentes que fazem parte da Organização das Nações Unidas e do sistema interestatal capitalista que não abrange apenas a Europa, mas todo o globo terrestre.
Já faz algum tempo que eu perambulo tal qual um “trotamundo” pela América do Sul. Quando criança, “escalava” as estantes de meu irmão mais velho para alcançar uma enciclopédia chamada “GEO”. Como o próprio nome diz, eram livros de geografia divididos entre os diferentes continentes da Terra. De todos os continentes que eu observava em suas páginas, a América do Sul e seus diferentes ecossistemas sempre me chamavam a atenção: fossem os desertos, as florestas ou a imensa espinha dorsal da Cordilheira dos Andes. Assim que, minha aproximação com a causa indígena foi uma consequência natural de uma “busca” por conhecer nosso continente austral e de minha condição de sul-americano.
O eminente sociólogo peruano José Carlos Mariátegui foi o grande pensador do século XX na busca de uma identificação do movimento indígena com a construção de uma nação. Mariátegui tinha o objetivo de corrigir as tremendas injustiças sofridas pelos indígenas. Ele acreditava que conseguiria esta “missão” através de um “novo socialismo” que traria a figura do indígena para o centro de uma construção nacionalista e popular. O fato é que, independentemente dos meios de construção de uma instituição governamental, torna-se fundamental a inserção do indígena para a criação do Estado-nação que todos almejamos algum dia criar em prol de um país próspero.
O cientista político Paulo Bonavides descreve que o conceito de nação está estreitamente vinculado ao conjunto de mitos, lendas e estórias que servem de inspiração de um povo para que possa, com base em seu “passado glorioso”, enfrentar as agruras do presente e lutar por um futuro próspero. Através das “veias” de nossa querida América Latina, somos do Estreito de Magalhães até o Rio Bravo, um conjunto de diferentes nações miscigenadas sob as bases solidificadas do mesmo alicerce: o povo indígena. Corre em nossas veias o sangue ancestral de centenas, talvez milhares, de nações que pereceram e sobreviveram. Faz parte de nossa cultura, nossa História, nossa alma. Talvez alguns queiram negar a História e ainda desejar que nossas origens européias advindas da colonização falem mais alto. Não irei aqui fazer um libelo contra as tradições que o continente europeu nos deixou, mesmo que tenha sido feito através de uma colonização, porque faz parte de nossas nações e isto é um fato também histórico. Mas é preciso que os países do nosso continente miscigenado aceitem de uma vez por todas seu legado indígena, assim como seu povo, como parte de suas nações. Isto que irei dizer é mais que inconteste…é destino. Uma nação, um país, que não se reconhece como tal e que nega aos seus a condição de cidadãos, de iguais, de nacionais, nunca terá prosperidade! A desunião sempre trouxe consigo a derrocada desde que todas as estradas levavam a Roma.
Retornando um pouco no tempo dos movimentos de libertação, o indígena sempre teve participação ativa na busca da liberdade. Iria ainda mais longe, muitas vezes foram eles que começaram os movimentos de insurreição na colonização, sendo que as classes médias e as elites europeias as seguiram depois que os movimentos, já amadurecidos pelas constantes rebeliões, demonstravam alguma chance de sucesso. Basta nos lembrarmos das lutas de Tupac Amaru e Tupac Katari, no Peru e na Bolívia respectivamente. Se o indígena foi o primeiro a lutar pela liberdade da América, maior ainda seria o seu direito sobre esta terra libertada. Então, o que explica o preconceito e a opressão das autoridades contra aqueles que, não só lutaram pela liberdade, mas que fizeram parte do legado e do sangue que correm nessas mesmas autoridades? Algum desejo recôndito de serem europeus? Esqueçam. Não são e nunca serão! Temos todos os sangue ancestral correndo em nossas veias.
Estive por mais de um ano nos Andes Centrais. Para mim, foi um daqueles tempos onde os “horizontes são expandidos”. Na região de Cusco, eu pude ver o preconceito contra os Quechuas (o povo que fazia parte do Império Inca). Para os Quechuas, todos os brancos, e até mesmo alguns mestiços, são vistos como estrangeiros. Sempre que podia, eu me identificava como brasileiro: tinha receio que pensassem que eu era de Lima e não quisessem ter muita conversa comigo. Há um forte ressentimento por parte do peruano Andino para com a capital localizada na costa desértica. Existe uma razão muito forte para isto. Lima foi o centro da colonização espanhola e, ao que tudo indica, a repressão para com o povo indígena foi inclemente, assim como o racismo que até hoje persiste na República. Não deixa de ser curioso este país. A sociedade “branca” tem preconceito com aqueles que construíram aquilo que seria de maior valor no seu território: a herança Inca. Milhares de turistas, todos os dias, visitam a cidade de Machu Picchu. Os arredores de Cusco estão repletos de tesouros históricos que fascinam todas as culturas do mundo. Encontrei turistas de todos os continentes! Todos eles maravilhados pelas cidades, caminhos e tesouros milenares do homem Andino…e mesmo assim seus ancestrais diretos seguem sendo alvo de racismo e injustiça. Trata-se de uma imensa ingratidão para com o povo Quéchua.
Os Quéchuas, como todos os povos de origens serranas, é reservado e desconfiado quando se trata dos estrangeiros. Como não poderiam ser? Eles ainda se recordam o que aconteceu quando os incas rebeldes da Cordilheira de Vilcabamba acolheram alguns soldados espanhóis fugitivos de Cusco (no início da colonização, houve uma disputa de poder entre os mercenários enviados pela Espanha). Ocorreu que após meses vivendo sob a proteção de Manco Inca, o líder da rebelião, estes mesmos espanhóis o assassinaram em traição em 1544. Desde então, o homem “Andino” tem vivido desconfiado da traição dos “estrangeiros”…quem pode culpá-los? Mas o povo Quechua não é assim: trata-se de um povo que, se você conquistar sua amizade, eles o irão acolher como se fosse um igual. Certa vez, após 4 dias fazendo a travessia do “Trekking Salkantay” (um dos percursos mais frequentados por turistas e montanhistas) no fim de minha jornada eu conheci um “porteador”: as agências de Cusco contratam “carregadores” para levar a comida, as barracas e o equipamento necessário para o “trekking”, desta forma os turistas não enfrentam as dificuldades de carregar mochilas pesadas pelas grandes altitudes rarefeitas do território Andino. Na descida de mil metros até o cânion do rio Vilcanota, último trajeto até chegar em Machu Picchu, nos tornamos bons amigos. Eu estava fazendo o trajeto por minha própria conta, sendo que o carregador levava um peso muito maior que o meu, usava apenas sandálias para caminhar e uma varinha de madeira que parecia que iria quebrar. Tudo isto para aliviar o peso para os turistas. Dei-lhe meu bastão de caminhada (que pode ser encontrado em qualquer loja de camping em Cusco por uns 30 soles) e seguimos juntos descendo as escarpas no território milenar de seu povo ancestral. Ao nos despedirmos, ele me convidou para visitá-lo em “Águas Calientes”, a cidade que fica próxima de Machu Picchu, quando eu retornasse.
Eu poderia relatar dezenas de experiências semelhantes. Certa vez eu estava em um caminho Inca (sim, os Incas construíram uma rede de caminhos por toda a Cordilheira) que partia da pequena cidade de Chinchero em direção ao Vale Sagrado e encontrei uma idosa Quechua e sua neta que faziam o mesmo trajeto. Caminhamos juntos alguns quilômetros. A idosa não falava espanhol, e sua neta era a tradutora. A amabilidade da senhora me surpreendeu, sendo eu mais um dos tantos “estrangeiros” que se interessam pela sua terra. Também havia um “Café” que eu frequentava em Ollantaytambo (outra cidade do Vale Sagrado que recebe muitos turistas para conhecer a “velha” Ollantaytambo, uma fortificação Inca). Depois de um tempo frequentando o mesmo “Café”, fiquei amigo dos proprietários. Como me tornei “casero” (como chamam carinhosamente os clientes) eles passaram a me cobrar o mesmo preço que cobram aos habitantes locais, mais barato do que cobram aos turistas, em sua maioria europeus. Numa ocasião, eu subi a serra nos arredores da cidade de Urubamba, um pouco antes de Ollantaytambo. Trata-se de um contraforte sem fim, repleto de trilhas estreitas que começa em um terreno pedregoso coberto de cactus (parecido um pouco com o semiárido brasileiro) e termina nos campos de altitude. Ao chegar quase no topo da serra, encontrei uma estrada de terra que contornava sinuosamente o contraforte até o povoado na base da montanha. Estava tarde para retornar e já vislumbrava uma caminhada pela noite gelada da Cordilheira. Felizmente, encontrei alguns lavradores descansando numa plantação. Eles me ofereceram “chicha” (bebida que se obtém da fermentação do milho). Enquanto conversavam em quechua, eu olhava a paisagem. Sem me cobrarem um “tostão”, me levaram em seu carro até a praça central de Urubamba. Agradeci a carona e, enquanto seguiam viagem, eu imaginei como seria este país caso “brancos” e quechuas pudessem se ver como iguais. Este é o povo Andino: amável e generoso, como todos nossos povos indígenas.
Estive um tempo vivendo em Urubamba, distante 60 km de Cusco. A pequena cidade está sendo, pouco a pouco, “colonizada” por habitantes de Lima e até mesmo estrangeiros: todos em busca da qualidade de vida que o “Vale Sagrado dos Incas” tem para oferecer. Impressionou-me que os “brancos” de Lima não se misturam com os “Urubambinos”: frequentam diferentes bares, cafés, festas…separados como se ainda vivêssemos na colonização espanhola. Mesmo na Bolívia, onde existe uma maior “democratização” indigena, devido a sua própria História de resistência e outros aspectos que não irei abordar aqui, a fratura persiste: basta qualquer um ir a Santa Cruz de la Sierra, abordar seus habitantes e perguntar o que pensam dos seus concidadãos que vivem no Altiplano. O mesmo se passa no Brasil, mais precisamente nos estados do norte do país. A todos aqueles que não reconhecem sua ancestralidade e recusam ao indígena sua condição de nacional eu tenho uma coisa a dizer: é preciso aceitar os indígenas de uma vez por todas como nossos irmãos! E não se enganem, não estamos lhes fazendo nenhum favor, e sim encarando uma realidade histórica em prol do futuro de todas as gerações que habitam o território nacional de cada um de nossos países.
O filósofo Maquiavel dizia que a tragédia dos homens era “ver o mundo como desejassem que assim o fosse, e não como realmente é”. Eu lhes digo e faço um presságio: a menos que vejam os indígenas como iguais, como cidadãos dotados de direitos que foram historicamente usurpados, a menos que o vejam como irmãos, nunca haverá um futuro para n ó s. Todos faz em os parte de Estados – Nações indígenas. Neles está a nossa origem… e o nosso futuro.