O Manto da Impunidade: Quando o Judiciário se Protege e Abandona a Amazônia


Por: Inory Kanamari

18 de novembro de 2025

Falar em acesso à justiça no interior do Amazonas é quase uma ironia. Para os povos indígenas, essa promessa constitucional mais parece uma miragem em meio à floresta: algo que se vê de longe, mas que desaparece quando se tenta alcançar. O sistema judiciário, blindado por uma proteção institucional quase sagrada, cria um cenário em que magistrados e servidores são intocáveis, enquanto aqueles que ousam denunciar suas ausências se tornam alvo de perseguição.

Em 2023, quando atuava como advogada no Vale do Javari, palco de crimes bárbaros contra um indigenista e um jornalista, e onde a violência contra povos isolados e de recente contato é rotina, vivi uma das experiências mais reveladoras (e dolorosas) da face real da justiça amazonense.

Na comarca em que trabalhava, a juíza e a diretora da vara simplesmente não residiam no município. Ambas atuavam em home office integral, em total desconexão com a realidade local. Denunciei. Ingenuamente, acreditei que o Tribunal de Justiça investigaria. Afinal, acesso à justiça não se garante à distância, nem por videoconferência para povos que mal têm acesso à energia elétrica ou internet.

A Corregedoria foi até a comarca. Mas não sem antes avisar a data e a hora da inspeção. Resultado? As servidoras chegaram alguns dias antes, encenaram normalidade e, claro, saíram impunes. No dia seguinte à saída do Corregedor, embarcaram de volta, deixando novamente a comarca abandonada.

E o que aconteceu comigo, a denunciante? Fui intimada pela Corregedoria a me defender sob acusação de denúncia falsa. Não investigaram passagens aéreas, não requisitaram registros de viagem. Apenas acreditaram na palavra das servidoras, transformando uma advogada indígena, pobre, em bode expiatório para dar o recado à advocacia: ninguém toca no Judiciário.

Era o clássico Davi contra Golias. Uma magistrada branca, rica, classista, protegida pelo sistema. De outro lado, eu: mulher, indígena, advogada de base, sem qualquer escudo institucional. O veredito já estava escrito.

A única razão para não ter sido esmagada foi o apoio internacional. Uma universidade canadense publicou meu relato, reconhecendo o óbvio: a ausência de juízes e servidores nas comarcas da Amazônia é um fator central da revitimização e do abandono dos povos indígenas. O processo contra mim foi arquivado. E a “punição” da magistrada? Uma transferência para a capital — o sonho de qualquer juiz do interior.

Enquanto isso, os povos indígenas seguem invisíveis, sem juiz, sem defensor, sem promotor, sem Estado.

Não se trata de um caso isolado. Trata-se de um sistema projetado para se proteger de dentro para fora. Um sistema no qual corregedorias funcionam mais como muralhas de blindagem do que como órgãos de controle. Onde juízes podem se ausentar de suas comarcas sem consequências. Onde denunciar é perigoso, e o silêncio, recompensado.

As consequências desse modelo são devastadoras:

  • Povos indígenas são obrigados a viajar dias em voadeiras para chegar a uma audiência que nunca acontece.
  • Mulheres indígenas vítimas de violência doméstica veem seus processos engavetados por decisões automatizadas, sem escuta, sem compreensão cultural.
  • Crianças indígenas em situação de vulnerabilidade crescem sem qualquer resposta efetiva do sistema de justiça.

E tudo isso é invisibilizado por um discurso institucional de eficiência e modernidade.

A verdade é dura: a justiça amazonense não falha apenas por ineficiência, ela falha porque escolhe se proteger antes de proteger os vulneráveis.

Enquanto juízes são tratados como semideuses, povos indígenas seguem tratados como estatística. Enquanto corregedorias protegem seus membros, comunidades inteiras seguem abandonadas, sem Estado, sem voz, sem direito.

A pergunta que precisamos fazer é simples: quem vigia os vigilantes? Se o Judiciário se blindar contra qualquer crítica, se transformar denúncias em perseguições, se punir mais quem denuncia do que quem pratica abusos, então a justiça no Amazonas continuará sendo um privilégio de poucos, e não um direito de todos.

É preciso romper esse pacto de silêncio. É preciso exigir transparência, fiscalização real, presença efetiva. Porque justiça que se esconde atrás de palácios e gabinetes em Manaus, enquanto comunidades inteiras sofrem no isolamento, não é justiça. É cumplicidade com a desigualdade.

E nós, que já fomos historicamente silenciados, não aceitaremos mais calar.

(*)Inory Kanamari é a primeira advogada indígena do povo Kanamari e uma das vozes mais relevantes na defesa dos direitos dos povos originários. Palestrante com mais de 50 apresentações no Brasil e no exterior, já integrou comissões da OAB-AM e do Conselho Federal da OAB, e atualmente é membra consultora da OAB-RJ (2025-2027). Atuou como consultora no projeto do CNJ que traduziu a Constituição Federal para a língua Nheengatu e foi professora convidada da Escola de Verão da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá, em parceria com a Participedia.

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