O misterioso vírus da leitura

Deu-se que naquele dia a Banca do Largo amanheceu cercada de gente por todos os lados. Jovens, velhos, crianças e adultos pareciam de lá não arredar o pé. Alguns tinham chegado antes mesmo dos primeiros clarões do sol de verão reverberarem na cúpula do Teatro Amazonas. De longe, ao avistar a banca sitiada, Joaquim tremeu nas bases. Não fazia mínima ideia daquela esquisitice. Ao custo de muitos empurrões e gritos, abriu caminho até a porta da banca. Continuava sem nada entender o que desejava aquela multidão de olhos aflitos e desejosos. O que haveria de querer aquela gente? Estaria em busca de comida? Mas a banca não tem outra coisa, senão livros, pensou. O fato é que, em pouco tempo, as prateleiras da banca ficaram vazias. Todos os livros, de todas as áreas, tinham sido misteriosamente vendidos. Não havia sobrado livro nem para remédio. Os que haviam conseguido comprar seu exemplar saíam em diferentes direções, com os olhos afogados e absortos nas páginas do livro, alheios a tudo e a todos.  E aqueles que não haviam conseguido sair com um livro pregado no rosto se dispersavam com enorme rapidez.

Exausto de tanto trabalho em tão pouco tempo, Joaquim postou-se na porta da banca a olhar em todas as direções, como se procurasse algum vestígio remanescente da turba. Descabelado e com a respiração ofegante, o suor lhe descia pelo rosto. Seus olhos arregalados ainda se recusavam a acreditar no que tinham visto. Afinal, o que havia dado naquela gente, ávida de uma hora para outra por livros e leituras?

Não distante da Banca do Largo, a rua da histórica Livraria Nacional estava apinhada de gente de ponta a ponta. Era um fuzuê medonho de rostos, sede e ansiedade. Recolhidos ao mezanino, os irmãos Mendes engoliam a aflição no seco. Em quase cinquenta anos como livreiros, nunca tinham visto na história um assédio daquela magnitude a uma livraria. Assustados, entreolhavam-se sem saber o que fazer. Há meia hora tinha chegado ao local um batalhão da PM acionado pelo José Maria. Mas os policiais estranhamente já chegaram sem armas, sem cassetetes e sem gás lacrimogêneo. Apenas passaram a fazer parte da multidão e disputar um espaço mais próximo da porta da livraria.

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Num dado momento, a multidão começou a gritar em um coro cadenciado: “Abre a livraria!  Abre a livraria! Abre a livraria!” Apesar do medo, mas pressionados, os irmãos Mendes não tiveram alternativa. As portas foram abertas. Carregando expressões de alívio e alegria, as pessoas se distribuíam rumo às estantes das diversas áreas de conhecimento, escolhiam um livro, abraçavam-se a ele, depois afogavam o rosto em suas páginas e entravam em uma das filas dos tantos caixas improvisados às pressas.

Com as prateleiras limpas e a livraria já esvaziada de livros e gente e sem mais terem o que fazer, os irmãos Mendes e seus funcionários voltaram ao mezanino. Em silêncio e petrificados, seus olhos não acreditavam no que viam: a rua em frente à Nacional e as ruas próximas estavam floridas de livros e leitores. Sem pressa, esbanjando alegria e largos sorrisos, leitores caminhavam nas mais diferentes direções, absortos em suas leituras, como se tivessem acabado de descobrir o mais valioso dos tesouros. Os irmãos Mendes continuavam sem entender que bicho havia mordido aquela gente.

Soube-se, depois, que os episódios da Banca do Largo e da Nacional tinham se repetido em outros pontos de vendas de livros. Comentava-se que no sebo “O alienígena” Jorge Bandeira tinha sido encontrado em alegre estado de choque, acomodado em uma poltrona sem dizer uma palavra sequer. As prateleiras inteiramente vazias. As livrarias localizadas nos shoppings da cidade também estavam com suas prateleiras desertas. Os clientes haviam sumido das outras lojas. O que se via eram gerentes e funcionários compenetrados nas páginas de um livro. Nos corredores reinava o silêncio da biblioteca de uma abadia. Tinham se transformado em imensas salas de leitura acachapadas de gente com a cara enfiada em um livro. Ninguém incomodava ninguém. Todos liam. Apenas liam. Os seguranças dos shoppings continuavam em seus postos, mas com os olhos pregados nas páginas de um livro. A Editora Valer não ficou de fora. Designers, revisores, coordenadores editoriais, entregadores e o próprio Isaac Maciel se viram na contingência de reviver os velhos tempos das promoções de final de ano na extinta Livraria Valer. Em pouquíssimo tempo as edições de todos os livros do catálogo da editora até então disponíveis no estoque estavam esgotadas.

Nas ruas da cidade o trânsito estava totalmente parado. Milhares de automóveis nas ruas, mas curiosamente reinava a paz. Motores desligados. Não se ouvia nenhum toque de buzina ou reclamação. Motoristas e, eventualmente, acompanhantes, todos com a concentração afogada na leitura de um livro, deixavam escapar expressões de contentamento, surpresa ou prazer. Nos supermercados as compras foram deixadas de lado. Clientes e funcionários, em pequenos grupos, se apertavam para dividir a leitura de um livro entre si. Na seção de eletrodomésticos outros clientes e funcionários aglomeravam-se diante dos aparelhos de TV. Mas, em lugar dos noticiários, apresentadores e apresentadoras liam livros de diferentes gêneros para aqueles que não tinham conseguido comprar um livro sequer. Nas bibliotecas da cidade não havia livros nas estantes. Todos tinham sido emprestados. Muitos usuários se apertavam nas salas apinhadas de leitores. Outros se acomodavam nas ruas próximas, sentados nas calçadas ou se apoiando nas paredes dos prédios e das casas, mas sem tirar o livro da frente dos olhos.

Logo correu uma surpreendente notícia. As sedes do governo estadual e da prefeitura tinham sido cercadas por milhares de leitores de livro em punho. Descobriu-se, não se sabe como, que tanto o governador quanto o prefeito e seus auxiliares tinham imunidade natural contra o vírus da leitura. Não foi diferente nos prédios da assembleia estadual e da câmara municipal. Servidoras e servidores se uniram à multidão de leitores e emparedaram nos respectivos plenários deputados e vereadores imunes ao vírus.

Soube-se, então, que aquela estranha febre por livros não se limitava a Manaus, era altamente contagiosa e tinha se disseminado com a velocidade de um raio pelos quatro cantos do país. De Brasília, espalhou-se a notícia de que o Congresso Nacional estava sitiado por enormes barricadas de livros. Corria a boca pequena que negacionistas apoiadores do presidente tinham se refugiado nos banheiros, apavorados com a multidão de leitores que, aos poucos, ocupava os corredores do prédio.

A situação não era diferente no Palácio do Planalto. O presidente e seus ministros, que estavam na grande sala de reuniões naquele final de manhã, foram cercados por centenas de milhares de leitores que ocuparam todas as dependências da sede do governo. Amontoados e de cócoras em um canto da sala, entraram em pânico e passaram a gritar histéricos quando começaram a se ver encurralados por verdadeiros paredões de livros. Mais apavorado que os outros, o presidente escapou de fininho e se refugiou na privada contígua à sala de reuniões e trancou a porta por dentro. De imediato foi seguido pelos ministros da educação, da economia e da justiça, que batiam na porta em desespero. Na sequência, outros ministros passaram a disputar, com empurrões e cotoveladas, na tentativa de se aproximar da privada, de onde se ouviu um ensurdecedor barulho escatológico acompanhado de um brevíssimo silêncio. Logo em seguida, da privada exalou um terrível e insuportável odor putrefacto que invadiu as outras dependências do Palácio do Planalto e se espalhou por todo o país.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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