Ka tücüna naina. Frase escrita na gramática kanamari e traduzida para o português significa: Olá, leitor(a).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, § único, declara que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Essa premissa deveria assegurar a participação democrática e igualitária de todos os cidadãos nas esferas de poder. No entanto, a realidade política e social do Brasil revela uma grande desconexão entre o que está expresso na Carta Magna e a verdadeira distribuição do poder no país. Apesar do discurso constitucional de igualdade e inclusão, o poder continua concentrado nas mãos de uma elite histórica, majoritariamente composta por homens brancos, ricos e heterossexuais. Este texto propõe uma reflexão sobre os obstáculos que dificultam a democratização das instituições brasileiras e a verdadeira inclusão social, com especial foco nas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
A concentração de poder nas mãos de uma elite dominante é uma característica histórica do Brasil e se reflete em diversas esferas da vida política e social. Apesar da promessa de igualdade garantida pela Constituição de 1988, os espaços de poder continuam sendo ocupados por um grupo restrito que mantém uma estrutura de privilégios e exclusão. A classe política, os empresários e as lideranças institucionais, em sua maioria, são homens brancos e pertencentes a uma classe econômica privilegiada, perpetuando um sistema que favorece a manutenção de seu controle sobre os destinos do país.
Esse fenômeno é particularmente visível nas campanhas eleitorais, onde a manipulação da opinião pública, muitas vezes disfarçada de influência, se torna uma estratégia eficaz para garantir a permanência desse poder concentrado. Disfarçados de promessas de mudança, os discursos eleitorais frequentemente ignoram as reais necessidades da população e reforçam o status quo, conduzindo os eleitores a escolhas que mantêm a estrutura de poder vigente. A falta de uma análise crítica por parte de uma parte significativa do eleitorado, somada à desinformação, contribui para a perpetuação de um sistema que marginaliza as camadas sociais mais vulneráveis.
Na advocacia, esse processo de exclusão se reflete de maneira clara nas seccionais da OAB. Embora a profissão de advogado tenha se tornado majoritariamente feminina e mais diversa ao longo dos anos, os cargos de liderança continuam, em sua grande maioria, sendo ocupados por homens brancos e vinculados aos interesses de uma elite econômica. A representatividade dentro da Ordem, portanto, ainda é uma meta distante, pois as mulheres, negros, indígenas e outras minorias enfrentam sérias dificuldades para ocupar espaços de poder. Eleições para a presidência das seccionais, por exemplo, frequentemente evidenciam uma falta de diversidade real, com as minorias sendo convidadas a compor chapas apenas para dar uma falsa impressão de inclusão.
Além disso, a falta de solidariedade entre as mulheres na política e na advocacia também é um reflexo do sistema patriarcal, que frequentemente leva as mulheres a competir entre si, em vez de se unirem em apoio mútuo. Embora as mulheres representem uma grande parte da força de trabalho e acadêmica, elas continuam a ser marginalizadas nos espaços de liderança, sem autonomia real. O patriarcado, aliado à falta de uma rede de apoio genuína entre as mulheres, tem sido um obstáculo importante para a construção de uma verdadeira liderança feminina no Brasil.
Outro fator que reforça a concentração de poder nas mãos da elite é a influência do poder financeiro nas eleições. A cultura política brasileira é profundamente marcada pelo uso do dinheiro como ferramenta para alcançar posições de liderança. As grandes festas, os almoços e encontros sociais durante as campanhas eleitorais são apenas um exemplo de como as eleições se tornaram um mercado de troca de favores, onde o poder econômico se torna um facilitador essencial para o sucesso eleitoral. Em um país de enormes desigualdades sociais, o poder financeiro, em vez de ser um fator de vergonha, se tornou um dos maiores determinantes para alcançar cargos de liderança política e institucional.
A Constituição Brasileira de 1988 estabelece um princípio fundamental: “todo o poder emana do povo”. Contudo, as estruturas de poder no país continuam a ser dominadas por uma elite restrita e privilegiada, que perpetua um ciclo de exclusão e desigualdade. A promessa de diversidade e inclusão, presente em muitos discursos políticos, muitas vezes não passa de uma fachada para manter os privilégios dos poucos que controlam o poder.
Para que as mudanças sejam reais, é necessário transformar as estruturas de poder no Brasil, criando um sistema verdadeiramente inclusivo, que respeite e reflita a diversidade do país. A advocacia tem um papel crucial nesse processo, e as seccionais da OAB devem ser um reflexo fiel da sociedade que pretendem representar. Isso só será possível quando houver uma verdadeira transformação nas estruturas de poder, permitindo a ascensão de lideranças realmente diversas e representativas.
A verdadeira justiça, igualdade e inclusão só serão alcançadas quando as vozes marginalizadas – de negros, indígenas, mulheres, pessoas trans e outras minorias – forem ouvidas e respeitadas de forma plena. A luta pela democratização das instituições e pela eliminação das barreiras que limitam a inclusão é constante e precisa ser mais do que um discurso vazio. A verdadeira mudança só ocorrerá quando o poder não for mais uma ferramenta de manutenção de privilégios, mas um instrumento para a transformação social.
Diante disso, surge uma pergunta importante: quem são e quantos são os advogados populares, negros, indígenas, deficientes, trans e ciganos que hoje ocupam cargos de liderança nas seccionais da OAB? É hora de refletir sobre a profundidade das promessas de inclusão e agir para que a verdadeira diversidade seja representada nas instituições de poder.
(*)Inory Kanamari, primeira advogada indígena do povo Kanamari. Atuou como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM de 2022 a 2024, vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB de 2023 a 2024. Também atuou como consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena Nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. É articulista da REVISTA CENARIUM, ativista, poetisa e membra da Academia de Letras, Ciências e Cultura da Amazônia (Alcama). Escreve como colaboradora toda terça-feira para o Portal Info.Revolução.