O tratamento excludente da OAB com advogados indígenas e negros da periferia


Por: Inory Kanamari*

18 de novembro de 2025

É com um misto de tristeza e ironia que abro meu coração.

Coração de uma mulher indígena, advogada há quase dez anos, que carrega nos ombros a missão herdada dos ancestrais: lutar contra a dor e a injustiça que esmagam os mais vulneráveis. Dentro da nossa própria casa chamada OAB, essa luta virou piada.

Para alguns colegas, sou “louca”. Para outros, “ingênua”. Pois bem: prefiro ser louca do que cúmplice. Louca, mas lúcida o bastante para enxergar que a advocacia periférica, negra, indígena e pobre se transformou em massa de manobra, usada e descartada conforme a conveniência da elite da Ordem. Somos lembrados apenas quando o calendário eleitoral exige votos. Fora disso, não valemos nada.

Enquanto advogados periféricos imploram na porta do Tribunal pela liberação de alvarás de R$ 800 ou R$ 1.000, valores que significam a comida do mês, o aluguel ou o material escolar dos filhos, a cúpula da Ordem desfila em aviões fretados, financia jantares requintados e transforma nossas anuidades em passaportes para festivais folclóricos. Tudo embalado na desculpa de “campanhas nobres”.

Nobreza de encenação.

Afinal, como acreditar em campanhas contra a violência doméstica de uma instituição que silencia diante das agressões praticadas por seus próprios membros contra colegas mulheres? Quantas Inory Kanamari? Quantas Edvania Barbosa Oliveira Rage ainda precisarão ser vítimas de colegas advogados dentro da OAB sem que nada aconteça aos violadores? E o pior: essas mesmas comissões que se autoproclamam defensoras das mulheres se calam quando a vítima é pobre, periférica ou indígena. Calam-se porque só interessa proteger as advogadas ricas; as demais podem seguir sendo violadas e revitimizadas dentro da própria instituição, sem que nada aconteça aos covardes de terno.

Não nos enganemos: nem em período eleitoral a OAB se ocupa do básico. Nem ao menos luta para que o Tribunal pague em tempo razoável os alvarás que significam sobrevivência para milhares de colegas. Em vez disso, oferecem pão com manteiga, pipoca e tapinhas nas costas, como se esse circo de “acolhimento” fosse capaz de estancar a miséria que nos atravessa.

É uma morte lenta. Uma morte planejada. Anestesiam-nos com migalhas, enquanto se banqueteiam com o que é nosso.

Se os corredores da Ordem falassem… Ah, se falassem!

Revelariam o desprezo, a zombaria, os risos disfarçados em sorrisos de escárnio. Riem de nossas roupas simples, de nossos carros usados, de nossa luta diária pela sobrevivência na profissão. Riem como senhores de engenho se divertiam ao ver corpos no tronco.

Para nós, advogados pobres, os alvarás significam vida. Para eles, não passam de irrelevância. O não pagamento? Não é problema da Ordem, é problema nosso. Nosso, dos periféricos, dos indígenas, dos negros, dos PCDs, dos que acreditaram que a advocacia poderia ser instrumento de justiça, e descobriram, com dor, que a OAB só protege seus próprios feudos.

Queremos dignidade.

Queremos uma Ordem que defenda, de fato, os que sustentam a advocacia com suor e sacrifício. Queremos nossos alvarás pagos sem a humilhação de implorar em datas festivas, enquanto nossos filhos esperam por comida. Queremos uma OAB que seja nossa, não um palanque de bufões.

Até lá, seguimos sendo os bobos da Corte.

Mas bobos que já não batem palmas para o espetáculo. Bobos que começam a rir da farsa. Bobos que percebem que o Coliseu da hipocrisia está prestes a ruir.

(*)Inory Kanamari é a primeira advogada indígena do povo Kanamari e uma das vozes mais relevantes na defesa dos direitos dos povos originários. Palestrante com mais de 50 apresentações no Brasil e no exterior, já integrou comissões da OAB-AM e do Conselho Federal da OAB, e atualmente é membra consultora da OAB-RJ (2025-2027). Atuou como consultora no projeto do CNJ que traduziu a Constituição Federal para a língua Nheengatu e foi professora convidada da Escola de Verão da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá, em parceria com a Participedia.

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