O voto decisivo de uma mulher

É por intrincados caminhos que as mulheres desempenham papéis institucionais depois da conquista de inserção delas nos espaços de poder. Assim como a sua participação na esfera pública, como sujeito coletivo, contribuiu para que ela refletisse sobre as pré-noções da cultura do patriarcado, atribuída à sua condição de suposta inferioridade, também a sua inserção nos espaços de poder a fez refletir sobre o seu papel nos rumos da história, não isento de discriminação.

As mulheres adentraram a esfera pública com altivez e determinação enfrentando os obstáculos e as sanções decorrentes desse processo. Convém não esquecer que, mesmo em face da política estrategicamente ponderada e politicamente correta das instituições brasileiras, as mulheres enfrentaram grandes dificuldades para se fazerem ouvir. Mesmo em instituições como o Supremo Tribunal Federal, colenda Corte do Judiciário brasileiro, há uma certa discriminação velada para com a figura da mulher, haja vista ser um espaço majoritariamente composto por homens.

Carmen Lúcia (71 anos), jurista da Suprema Corte é um emblema de mulher que se fez respeitar, em meio a um ambiente androcêntrico de disputas retóricas e filosóficas, nos domínios das leis. Rubin (1997), é enfática em afirmar que as mulheres usam a si mesmas como armas, porque possuem a força de um projétil, elas não precisam armar-se com nada mais do que o autoconhecimento. Voz ponderada sem alterar o tom, olhos mansos e rosto sereno, Carmen Lúcia foi a segunda mulher a ocupar o cargo de Ministra do STF, depois de Ellen Gracie Northfleet. Foi, pois, a primeira Ministra do STF a usar calça comprida durante uma sessão plenária, em 15 de março de 2007, pois, desde o ano de 2000 a calça comprida para mulheres havia sido liberada para uso.

Observe-se que a seiva do patriarcado impregnava o tecido da Suprema Corte, cujo cheiro não se consegue estirpar em pouco espaço de tempo. O que faz Carmen Lúcia ser uma rocha inabálavel ? Aquela menina mineira interna em colégio de freiras durante todo o ensino fundamental e médio, tornou-se uma potência, porque aprendeu a pedagogia da confiança em si, e mais, tornou-se um sujeito coletivo representando a coragem e a força de todas as mulheres. Coube a ela proferir o voto decisivo no julgamento da trama golpista que resultou na condenação de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, junto com outros sete réus.

As mulheres compõem as chamadas minorias sociais, ou seja, grupo social que enfrenta vulnerabilidade, desvantagem, subtração de direitos e outros fatores de opressão e exploração, o que não tem nada a ver com critério numérico populacional.Quando Carmen Lúcia proferiu o seu voto de condenação a um indivíduo de prática abjeta e nociva ao povo brasileiro, ela deu o grito das mulheres calcado no princípio inalienável de ir e vir (Santo Agostinho,2023). Para Morell (1983) o grito das mulheres é um aspecto fundamental do seu estado degradante, pela qual elas passam ao longo da história.

A ideia de sujeito se diferencia das concepções de indivíduo e de pessoa. A noção de sujeito se inscreve no estatuto da cidadania, pois é a cidadania que faz a mediação na sociedade capitalista (Torres, 2005). As formulações sobre a categoria de sujeito estão relacionadas ao coletivos organizados dentro da sociedade, para fazerem a pugna dos direitos junto ao Estado brasileiro. As mulheres são minorias sociais que lutam pela equidade de gênero no Brasil e no mundo.

É este o simbolismo presente no voto da Ministra Carmen Lúcia. Ela riscou o firmamento em favor das mulheres, um doce gosto de vitória para um coletivo de gênero pouco ouvido e muito vilipendiado no curso da história. Um raio luminoso e uma memória que ficará registrada nos arcanos da história recente da democracia brasileira.