Opinião não substitui evidência: falas de deputados da Aleam sobre a BR-319 contrariam o consenso científico


Por: Lucas Ferrante

23 de novembro de 2025

A repercussão do embate envolvendo a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva no Senado chegou à Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (ALEAM), onde parlamentares utilizaram seus discursos para defender a pavimentação da BR-319 e atacar a ministra. Como pesquisador com extensa produção científica sobre os impactos socioambientais dessa rodovia, venho responder tecnicamente, com base em evidências, às falas proferidas por esses deputados estaduais.

O deputado estadual João Luiz (Republicanos) usou a tribuna da Assembleia Legislativa do Amazonas para defender os senadores Omar Aziz e Plínio Valério, elogiando sua atuação no recente embate com a ministra Marina Silva no Senado. Em seu discurso, criticou os dados apresentados pela ministra sobre o colapso de oxigênio em Manaus, afirmando que “não foram seis óbitos, mas mais de 15 mil”, e mostrou imagens de caminhões atolados na BR-319 para ilustrar a precariedade da rodovia. O parlamentar ainda rejeitou a comparação com o estado natal da ministra, argumentando que “o estado da ministra tem ruas pavimentadas que dão acesso ao restante do Brasil”, e apresentou uma moção de parabenização aos senadores amazonenses por sua postura no Senado.

Como pesquisador que liderou os alertas científicos sobre a segunda onda de COVID-19 em Manaus, causa espanto ouvir do deputado João Luiz uma defesa cega de narrativas políticas que ignoraram, à época, os avisos da ciência. Onde estava o deputado quando, ainda em junho de 2020, alertamos por meio de nota técnica solicitada pelo Ministério Público do Amazonas (MP-AM) sobre a iminência de uma nova onda mais letal da pandemia? Onde estavam seus questionamentos quando essa advertência foi reforçada nacionalmente no Jornal Nacional, publicada na revista Nature Medicine e apresentada na própria Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (ALEAM) meses antes da tragédia se consumar? As mortes não ocorreram por falta da BR-319, mas sim por negligência — inclusive da ALEAM — ao ignorar os alertas técnicos, e por parte do governo federal da época, que optou por uma logística mais lenta, cara e ineficaz: os caminhões atolados na rodovia precária que agora são exibidos por deputados como argumento político.

 A comparação com o estado de origem da ministra Marina Silva não apenas desvia o foco da responsabilidade local como ignora que a verdadeira conexão de Manaus com o Brasil sempre foi fluvial e aérea. Como demonstramos em artigo científico no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, a escolha da BR-319 para transporte de oxigênio não foi uma solução emergencial, mas sim uma manobra de propaganda política que custou centenas de vidas, ampliou desigualdades e agora é usada como justificativa para obras que representam uma ameaça ambiental, sanitária e aos povos indígenas do Amazonas. O povo do Amazonas merece políticas públicas baseadas em evidências, não em oportunismo político.

Na mesma sessão, o deputado Carlinhos Bessa (PV) minimizou os impactos ambientais da pavimentação da BR-319 com um argumento reducionista: “Até meu filho de 12 anos sabe que os crimes ambientais acontecem muito mais agora do que se a BR-319 já estivesse asfaltada.” Tal afirmação ignora completamente o corpo de evidências produzido por estudos científicos revisados por pares que mostram exatamente o oposto. Em artigo publicado na Land Use Policy, demonstramos que a mera expectativa de pavimentação da BR-319 já provocou um aumento expressivo do desmatamento ao longo de seu traçado, inclusive dentro de áreas protegidas. Desde o início das obras de “manutenção” da rodovia em 2015, a taxa de desmatamento nas proximidades da BR-319 mais que dobrou, e áreas antes intactas passaram a ser alvo de grilagem, queimadas e ocupações ilegais. A ideia de que o asfalto traria ordem ignora o padrão histórico da Amazônia, em que toda rodovia aberta tem servido como vetor de destruição florestal, avanço da fronteira agropecuária e pressão sobre Terras Indígenas e Unidades de Conservação, como evidencia o Atlas da Amazônia Brasileira. O papel do legislador não é simplificar problemas complexos com frases de efeito, mas sim enfrentar a realidade com base em dados técnicos e responsabilidade intergeracional.

Já o deputado Comandante Dan (Podemos) criticou a cobertura da mídia sobre o embate envolvendo a ministra Marina Silva, afirmando que “alguns veículos de comunicação desconsideraram a nossa realidade”, e reforçou a defesa da pavimentação da BR-319 com a frase: “Nós aqui do Amazonas precisamos de soluções.” De fato, o Amazonas precisa de soluções — mas elas devem ser eficazes, sustentáveis e baseadas em evidências. Pavimentar a BR-319 não representa uma solução real para os desafios econômicos e logísticos da região. Após seu abandono em 1988 por falta de viabilidade econômica, o estado do Amazonas viveu seu maior ciclo de crescimento econômico, com destaque para o fortalecimento do Polo Industrial de Manaus (PIM), que em 2023 alcançou um faturamento recorde de R$ 173,47 bilhões, empregando mais de 100 mil pessoas diretamente — tudo isso sem a BR-319 asfaltada. O modelo de transporte que sustenta esse desenvolvimento é o fluvial e o aéreo, e não o rodoviário. Em uma reunião promovida pelo Ministério Público Federal em 2019, uma representante do PIM afirmou categoricamente que a BR-319 é inócua às atividades industriais da região, exemplificando que empresas como a Samsung jamais colocariam uma carreta de celulares para trafegar pela rodovia, dada sua insegurança e alto custo em relação ao modal fluvial. Reforçar a BR-319 como solução econômica ignora que sua pavimentação acelera o desmatamento, expande atividades ilegais como grilagem e narcotráfico, e desorganiza cadeias logísticas locais. A verdadeira solução para o Amazonas passa por fortalecer o transporte hidroviário, investir em conectividade digital, garantir políticas públicas voltadas para a bioeconomia e proteger os territórios indígenas e tradicionais. A pavimentação da BR-319, longe de ser uma resposta, é parte do problema.

O presidente da ALEAM, deputado Roberto Cidade (UB), reforçou o apoio aos senadores amazonenses e à pavimentação da BR-319, endossando o argumento de que a rodovia seria crucial para o progresso do estado. No entanto, essa narrativa ignora tanto a realidade econômica atual quanto os dados técnicos disponíveis. A Zona Franca de Manaus, principal motor econômico do Amazonas, consolidou-se e prosperou nas últimas décadas sem depender de uma ligação terrestre com o restante do país. Seu funcionamento se dá majoritariamente por rotas fluviais e aéreas, que se mostram mais adequadas à logística regional. Ao mesmo tempo, estudos conduzidos em parceria com o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM), órgão vinculado ao Ministério da Defesa, demonstram que a expectativa de pavimentação causou aumento da grilagem, do desmatamento e da presença crescente de facções criminosas na região. A retomada das obras desde 2015 provocou a conversão de vastas áreas públicas em pastagens ilegais e intensificou a violência associada a conflitos fundiários.

Mais grave ainda são os riscos epidemiológicos associados à abertura da rodovia. Conforme alertamos em artigos publicados nas revistas Nature e The Lancet Planetary Health, a pavimentação da BR-319 expõe grandes blocos de floresta primária a frentes de degradação e contato humano, criando condições ideais para o surgimento de novas epidemias de origem zoonótica. Ignorar esse alerta científico é não apenas irresponsável — é perigoso. Todos os estudos científicos sérios indicam que a pavimentação da BR-319, sem um plano rigoroso de proteção ambiental e respeito aos direitos humanos, levará ao colapso ambiental, sanitário e institucional na Amazônia. O desenvolvimento sustentável só é possível com ciência, justiça social e responsabilidade ambiental e política.

(*) Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Foi o primeiro autor e líder do grupo de pesquisa que previu a segunda onda de COVID-19 em Manaus, com estudos amplamente citados e publicados em periódicos internacionais. É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

(*)Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Foi o primeiro autor e líder do grupo de pesquisa que previu a segunda onda de Covid-19 em Manaus, com estudos amplamente citados e publicados em periódicos internacionais. É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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