Países mais pobres do mundo sofrem com escassez de vacina contra Covid-19

Pacientes esperam por resultados de testes de detecção para o novo coronavírus no Quênia, em junho (BRIAN OTIENO / NYT)
Com informações do Infoglobo

SÃO PAULO – Mais de 5 bilhões de doses de vacina contra a Covid-19 já foram administradas globalmente, e cerca de um terço da população mundial recebeu ao menos uma dose até agora. De longe, os números podem impressionar, mas, quando esmiuçados, descobre-se que só 0,3% dessas doses foram administradas nos 27 países de renda mais baixa. Ao todo, pouco mais de 15 milhões de vacinas foram aplicadas nesse grupo, que concentra quase 650 milhões de pessoas — isto é, menos de 2% da população das nações mais pobres tomou ao menos uma dose.

A desigualdade imensa na distribuição global de vacinas enfurece o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, que há meses insiste em que a falta de acesso de dezenas de países a imunizantes constitui um vergonhoso fracasso internacional.

Na semana passada, Tedros pediu uma moratória até o final de setembro para países que, como é o caso do Brasil, pretendem dar uma terceira dose aos seus cidadãos antes que outros países tenham recebido vacinas para imunizar seus idosos e profissionais de saúde. Seu objetivo é que todos os países alcancem10% de imunizados até o final do ano:

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“Enquanto centenas de milhões de pessoas ainda esperam pela primeira dose, alguns países ricos estão adotando doses de reforço”, disse. “Precisamos da cooperação de todos, especialmente de um punhado de países e empresas que controlam a oferta global de vacinas”.

Ao justificar o pedido, Tedros mencionou um ponto que é consenso entre epidemiologistas: enquanto só alguns se imunizam, todos correm riscos. O descontrole da pandemia em partes do mundo implica a existência de incubadoras de novas variantes, potencialmente resistentes aos imunizantes atuais.

Além disso, a continuação da pandemia em amplas regiões do globo gera impactos econômicos devastadores. Segundo um relatório da Economist Intelligence Unit recém-divulgado, países que não conseguirem vacinar 60% de suas populações até o meio do ano que vem terão perdas acumuladas de US$ 2,34 trilhões entre 2022 e 2025.

As preferências de compras dos países ricos, a insuficiência da produção global de vacinas, a falta de financiamento para expandi-la e doações aquém do necessário são citados como os principais motivos para a concentração vacinal. Especialistas apontam a expansão da produção, possivelmente com fornecimento via núcleos regionais, como a melhor estratégia para solucionar o problema.

África esquecida

A África é, disparado, o continente com maior déficit vacinal. Dos 30 países que menos vacinaram no mundo, 26 estão na África. Dos 1,26 bilhão de africanos, só 4,7% tomaram pelo menos uma dose de vacina antiCovid. Do total global de vacinas, só 1,6% foi administrado ali — 93 milhões de doses, pouco mais da metade das que o Brasil aplicou.

Doses de vacina de acordo com os continentes Foto: Editoria de Arte
Doses de vacina de acordo com os continentes Foto: Editoria de Arte

A diferença é tão grande que Ásia e Oceania, os continentes que menos vacinaram depois do africano, o fizeram numa proporção muito maior: em ambos, 34% das pessoas já tomaram ao menos uma dose. A América do Sul acelerou sua vacinação nos últimos meses, e, atualmente, pouco mais de 53% de seus habitantes já tomaram ao menos uma dose. O número já empata com o da América do Norte, embora ainda esteja abaixo dos 64% da União Europeia.

Há, também, uma enorme correspondência entre a renda dos países e o acesso a vacinas. Mais de 80% das doses foram para países de renda alta (como, por exemplo, os da Europa Ocidental) ou média alta (como o Brasil).

Vacinas estocadas

As compras antecipadas pelos países ricos, enquanto as vacinas ainda eram desenvolvidas, são uma das explicações para a desigualdade. Segundo uma estimativa do Instituto Brookings, de Washington, mesmo se vacinarem toda a sua população, os EUA terão um excesso de 1 bilhão de doses até o final do ano. O Reino Unido comprou doses para quatro vezes a sua população.

Se fossem distribuídas igualmente, seriam necessárias 11 bilhões de doses para vacinar 70% da população global. De acordo com o Centro de Inovação em Saúde Global da Universidade Duke, a produção total prevista para até o final do ano é de 12 bilhões de doses. Dessas, no entanto, 9,9 bilhões já estão prometidas para países de renda alta e média alta.

Doses de vacina de acordo com a renda dos países Foto: Editoria de Arte
Doses de vacina de acordo com a renda dos países Foto: Editoria de Arte

Com isso, a iniciativa Covax, que deveria ajudar a distribuir vacinas para os países pobres, está atrasada. O consórcio prometeu entregar 2 bilhões de doses até o final de 2021, mas, até agora, entregou apenas 215 milhões globalmente. O ritmo vem acelerando — até o começo de julho, a marca não chegava a 100 milhões — mas continua insuficiente.

“O Covax não foi inicialmente financiado, o que o deixou em uma posição difícil”, afirmou ao GLOBO Mesfin Teklu Tessema, diretor de Saúde do International Rescue Committee, uma ONG humanitária. “E, agora que o consórcio tem as doses prometidas, não há imunizantes disponíveis. Estão no fim da fila, em função da falta de compromisso financeiro anterior”.

Atrapalhou a iniciativa, ainda, uma proibição das exportações que a Índia impôs em abril ao Instituto Serum, que deveria ser o principal fabricante da vacina da AstraZeneca. Na época, o País começou a sofrer com a variante Delta.

Produção local

Os países ricos têm aumentado suas promessas de doação. No contrxto do encontro do G-7 na Inglaterra em junho, o presidente Joe Biden prometeu doar 500 milhões de doses até o meio de 2022. Para este mesmo prazo, o Reino Unido prometeu 100 milhões, e França, Alemanha e Japão prometeram cerca de 30 milhões cada.

Os números, ainda assim, são insuficientes para a imunização global. As soluções para o impasse envolvem tanto uma redistribuição das doses existentes quanto um aumento da produção.

“Há um excesso de vacinas, muitas estão paradas e vão vencer sem serem utilizadas”, afirmou Mosoka Fallah, fundador do Instituto Nacional de Saúde Pública da Libéria. “Também é necessário apoiar as organizações internacionais para oferecerem as vacinas, e garantir a transferência de tecnologia para permitir a expansão da produção. O ideal é que a produção possa se dar localmente”.

Há meses fala-se em uma suspensão dos direitos de propriedade intelectual das vacinas, o que poderia permitir a expansão da produção global, contanto que houvesse transferência de tecnologia. Em maio, o governo dos EUA anunciou apoio a essa suspensão, mas a iniciativa pouco caminhou desde então, enfrentando resistência de atores como a União Europeia, que alegam que a iniciativa inibirá a pesquisa e a inovação tecnológica e científica.

O Banco Mundial concorda com a tese dos europeus, mas ao mesmo tempo sustenta que os governos ricos deveriam injetar bilhões de dólares para expandir a produção global de vacinas. Em junho, em conjunto com a OMS, a OMC e o FMI, o banco pediu US$ 50 bilhões — cerca de 0,05% do PIB global — para acelerar essa produção. O pedido, no entanto, não foi atendido.

“Essa recusa em oferecer tão pouco deixa claro o derretimento do multilateralismo e da solidariedade internacional”, afirmou o coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz, Paulo Buss. “Isso não é só imoral, mas também epidemiologicamente condenável. O resultado será o surgimento de novas variantes”.

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