Papa Francisco pede que fiéis ‘baixem as armas’ ao abordar crescentes episódios sangrentos na RDC
02 de fevereiro de 2023
A RDC é a parada inicial de um giro do papa pelo continente e marca a convergência de interesses da Igreja Católica na região (Reprodução/AFP)
Da Revista Cenarium*
SÃO PAULO – Após um discurso inflamado em seu primeiro dia na República Democrática do Congo (RDC), o papa Francisco diminuiu o tom, mas manteve o enfoque político ao rezar uma missa em Kinshasa, nesta quarta-feira, 1°.
Mais de um milhão de pessoas compareceram ao evento, realizado na pista de um aeroporto voltado para membros do governo. Milhares dos presentes passaram a madrugada no local à espera do pontífice.
Se, na véspera, Francisco apontou o dedo para a comunidade internacional — segundo ele, culpada de submeter o País africano a um “colonialismo econômico” e fechar os olhos para as consequências — , desta vez, ele se voltou à violência que assola a RDC há décadas — dados da ONU indicam que conflitos armados desalojaram 5,7 milhões de congoleses internamente e levaram quase um quarto da população de 96 milhões a enfrentar níveis severos de fome.
“A todos os habitantes deste País que chamam a si mesmos de cristãos, mas usam a violência, o Senhor está lhes dizendo: ‘Baixem suas armas, abracem a piedade'”, disse o pontífice, acrescentando que Deus desejava que seus fiéis tivessem “a coragem de conceder uns aos outros uma grande anistia do coração”.
Na audiência, diversas mulheres usavam vestidos estampados com o rosto do líder da Igreja Católica, obedecendo a uma tradição de muitos países africanos de honrar dignatários, enquanto crianças assistiam à missa empoleiradas em um avião em busca de um ângulo melhor.
Francisco ainda afirmou que os congoleses sofrem com “feridas que ardem, continuamente infectadas por ódio e violência, enquanto a Justiça e o bálsamo da esperança parecem nunca dar as caras”. “Que bem faria limpar nossos corações do ódio e do remorso, de cada traço de ressentimento e de hostilidade”.
Pessoas em cima de um avião antigo assistem à missa celebrada pelo papa Francisco no aeroporto Ndolo Airport, em Kinshasa, na República Democrática do Congo (Yara Nardi/Reuters)
Mais tarde, em um encontro com vítimas dos conflitos locais, o pontífice voltou a aludir às declarações duras que havia feito na véspera sobre a ligação entre a violência armada e a exploração dos recursos na RDC. Francisco pretendia ir, pessoalmente, à Goma, cidade no Nordeste congolês que é um dos focos de disputa entre milícias e o governo, mas foi impedido, justamente, pelo aumento dos ataques na região.
“Esta é, acima de tudo, uma guerra desencadeada por uma ganância insaciável por matérias-primas”, disse ele após ouvir relatos de estupros, amputações, escravidão sexual e canibalismo forçado. “Que escândalo e que hipocrisia. As pessoas estão sendo estupradas e assassinadas, enquanto o comércio por trás disso segue florescendo.”
A viagem do papa se insere em um momento de aumento dos episódios sangrentos na ex-colônia belga, que assiste a guerras contínuas por disputas de minerais como coltan, usado em produtos eletrônicos.
Mais recentemente, o ressurgimento do grupo armado M23, que conquistou amplas faixas territoriais na fronteira com Ruanda, tem multiplicado os casos do tipo. Há, ainda, a presença de grupos terroristas como o Estado Islâmico (EI). A violência no País vem, porém, de muito antes, e inclui rebeliões no exterior que tiveram a RDC como base, disputas identitárias, sobretudo, em relação a grupos falantes de idiomas ruandenses, e a incapacidade do Estado de lidar com os mais de cem grupos armados no território.
A visita do papa — a primeira de um pontífice à RDC desde os anos 1980, quando o País ainda se chamava Zaire — estava, inicialmente, prevista para o último mês de julho. Teve de ser adiada, no entanto, devido às dores no joelho do líder de 86 anos, que tem usado uma cadeira de rodas para se locomover.
A RDC é a parada inicial de um giro do papa pelo continente e marca a convergência de interesses da Igreja Católica na região — o olhar aos refugiados e aos recursos naturais, o movimento em direção a países tratados como periféricos e a interlocução com jovens católicos para conter o declínio de fiéis.
Francisco continua em Kinshasa até a manhã de sexta-feira, 3, quando viaja para o Sudão do Sul, o País mais jovem do mundo e também um dos mais pobres. Lá, será acompanhado pelo arcebispo de Canterbury e o moderador da Igreja da Escócia, em uma conjunção inédita dos três líderes cristãos no exterior.
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