Para anticiência, CENARIUM +CIÊNCIA

A revista lançou a coluna CENARIUM+CIÊNCIAS, que trará aos leitores pesquisas desenvolvidas na Amazônia nas mais diversas áreas do conhecimento (Reprodução/Guilhereme Oliveira)

Daniel Viegas – Especial para a Revista Cenarium*

MANAUS – Em um momento em que a anticiência se torna um movimento, ganha representatividade e poder político, a ciência, cada vez mais, se reafirma como o caminho possível para a resistência do conhecimento humano historicamente construído e em construção. Mas, qual a importância da ciência na vida cotidiana das sociedades? Como as pesquisas científicas realizadas na Amazônia podem nos conduzir à reflexão da vida cotidiana e no planeta?

Para tentar responder essas questões, a revista lança a coluna CENARIUM+CIÊNCIAS, que trará aos leitores pesquisas desenvolvidas na Amazônia nas mais diversas áreas do conhecimento, como a Antropologia, Biologia, Ecologia, Direito, Estudos Indígenas, Geografia, História, Museus e Jardins Botânicos, e Saúde.

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A inscrição na placa de madeira na comunidade criada por Manuel Paulino diz “entre”. Na foto, a menina Uwripipi, que significa pássaro pequeno, bisneta do líder indígena (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Manaus e seus territórios pluriétnicos

Para inaugurar essa série, nada mais adequado que uma pesquisa interdisciplinar a partir da Filosofia, a “mãe” das ciências, que permita questionar pré-concepções fruto de ideias produzidas cotidianamente, inclusive pela mídia, que estigmatizam o outro sem qualquer respaldo científico.

É movido pela irresignação típica dos filósofos, acrescido de sua vivência na educação escolar indígena, que o professor Glademir Sales do Santos produziu a tese Territórios pluriétnicos em construção: a proximidade, a poiesis e a práxis dos indígenas em Manaus – AM, aprovada junto aos Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, e que lhe concedeu o título de doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia.

Mas, o que este estudo tem a ver com a nossa vida? Poiesis? Práxis? Territórios pluriétnicos? A resposta está nos dados, nas análises e nas verificações de campo feitas com rigorosa precisão metodológica e em diálogo com teorias de grandes pensadores, que aflora da invisibilidade um Amazonas e uma Manaus pluriétnicos, a despeito de rótulos racistas de “índios fake”, que se tentam impor aos povos indígenas na capital.

O professor Glademir Sales dos Santos analisou território pluriétnicos em construção na capital amazonense, sistematizando atos e falas de indígenas e, contextos específicos (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Uma trajetória de amor e resistência nas entrelinhas da pesquisa

Fruto da união do povo Karapãna e do povo Kubeo, Manuel Paulino nasceu no rio Marié, um afluente do Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, em 1942, com uma predestinação dada pelos encantados: caberia a ele unir povos e articular a resistência. Isso não fez sentido ao curumim, até se tornar interno na escola salesiana daquele município.

O confronto com a igreja foi a fagulha para inquietações e lhe abriu os ouvidos às vozes do destino. O guerreiro Karapãna apaixona-se por uma Piratapuia e com ela transpõe os muros do internato. Embrenham-se na floresta e seguem em direção aos seringais, às colheitas de sorva e ao corte da piaçava onde, já como uma família, encontram a escravidão do aviamento. Mas, nos espíritos de Paulino e Otília já não havia outro caminho que não o da liberdade.

O casal se lança nas águas do rio Negro, já com cinco dos oito filhos e a determinação de continuar resistindo em manter sua identidade. Encontram com funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e recebem uma oferta de trabalho na relação com os outros povos.

Manuel Paulino, que atuou na liderança do povo Karapãna, teve importante papel na formação de comunidades indígenas no entorno de Manaus. O ancião morreu de Covid-19, em 2020.

O Karapãna passa a trabalhar nas Frentes de Atração Wamiri-Atroari e testemunha a dizimação daquele povo, seus corpos empilhados, enterrados em valas comuns, o cheiro de sangue, da carne putrefata, os gritos das crianças, o desespero das mães. O racismo tornava-se mortífero e Paulino abandona o serviço, sem nem olhar para trás.

Ele e a esposa refazem morada às margens do Tarumã-Açu e do Cuieiras nos anos 1970, de onde mantêm relação com os parentes do Alto Rio Negro e com as mais diversas etnias, cujas trajetórias se cruzam nas ocupações em Manaus, quando então cumpre o destino que lhe foi dado pelos encantados Karapãna.

(*) O colaborador é pesquisador no projeto Nova Cartografia da Amazônia, advogado, procurador do Estado do Amazonas e doutor em Direito.

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