‘PEC das Praias’: MPF aponta impactos socioambientais de proposta em discussão
Por: Ana Cláudia Leocádio
04 de dezembro de 2024
O MPF e uma praia (Tania Rêgo/Agência Brasil)
BRASÍLIA (DF) – A Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do Ministério Público Federal (4CCR) emitiu uma nota pública contrária à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 03/2022, que altera o domínio da propriedade dos terrenos de marinha. A proposta ficou conhecida como a “PEC das Praias”. De acordo o MPF, a aprovação da medida geraria impactos socioambientais graves.
A divulgação da nota pública da 4CCR nesta quarta-feira, 4, ocorre no mesmo dia em que a PEC das Praias teve a discussão suspensa na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal. O relatório do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) é favorável à proposta. Não foi definido prazo para retorno do texto.
Conforme o MPF, a PEC 03/2022 tende a “a causar a privatização das praias, ao permitir que empresas de diversos setores passem a ter domínio sobre esses territórios, como resorts e hotéis. Na prática, o cercamento dos terrenos, que não mais estariam sob a fiscalização da União, excluiria parte da população que não tem condições de pagar pelo acesso aos locais mais valorizados, prejudicando o acesso a bens de uso comum”.
“A Constituição estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, destaca a nota.
Ainda de acordo com a Câmara, o art. 60, § 4o, IV, da Constituição assegura que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: os direitos e garantias individuais”. “Ao possibilitar a restrição de uso coletivo das praias, a PEC 3/2022 viola inevitavelmente direitos e garantias individuais de grande parte da população brasileira”.
Segundo o MPF, “o avanço desordenado da urbanização tem o potencial de prejudicar a qualidade ambiental e de saúde da população” e “não leva em conta as diversas populações que habitam as áreas costeiras, bem como seu papel na manutenção da paisagem em termos estratégicos e funcionais”.
“Além disso, ao prever a extinção da faixa de segurança, a medida não considera a emergência de eventos climáticos extremos e nem o aumento dos riscos de erosão e de inundação nos terrenos localizados no litoral, por conta da expansão da ocupação das áreas costeiras”, reitera.
Outro ponto indicado pelo MPF é que a PEC também retira da União a possibilidade de reservar áreas para implantação de novos projetos ligados à nova matriz energética, como as eólicas e outras, o que prejudicaria os projetos mais ambientalmente sustentáveis previstos para a zona costeira.
Este é o segundo posicionamento do MPF sobre a matéria. Em setembro, a Câmara de Direitos Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral do MPF (1CCR) enviou ao Senado Federal nota técnica contrária à ‘PEC das Praias’. O documento sustenta que, “além dos prejuízos socioambientais para a população, a iniciativa representaria riscos à segurança nacional e à segurança pública”.
Relator apresentou mudanças
A proposta que tramita no Senado foi apresentada na Câmara dos Deputados em 2011, mas só aprovada em 2022, quando chegou para análise da CCJ do Senado. O senador Flávio Bolsonaro foi designado relator da matéria em fevereiro de 2023.
O texto revoga o inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art.49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e visa a transferir terrenos de marinha (terras da União no litoral) para Estados, municípios e ocupantes particulares. Atualmente, essas áreas pertencem à União e correspondem aos 33 metros seguintes ao último ponto alcançado pela maré alta em cada região costeira.
O senador Flávio Bolsonaro é relator da PEC das Praias (Senado Federal)
Flávio Bolsonaro disse que apresentou novo relatório com as emendas para deixar claro que a PEC nunca tratou de praia, mas foi apelidada com esse nome. “Então eu fiz questão de trazer praia para dentro desta PEC para que não reste nenhuma dúvida de que a forma como se encontram hoje as praias, o seu regime jurídico e o seu tratamento pela Constituição e pela legislação não mudarão”, disse.
“Na verdade, eu peguei o que já diz a legislação federal hoje sobre praia e estou colocando na PEC”, afirmou ao citar o acréscimo de um parágrafo que diz: “As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica, não sendo permitida qualquer forma de utilização do solo que impeça ou dificulte o acesso da população às praias nos termos do plano diretor dos respectivos municípios”.
Além disso, o senador propôs, ainda, mudanças no prazo para as transferências gratuitas e venda dos terrenos, de dois para cinco anos, e propôs que os recursos oriundos das negociações sejam destinados “a fundo nacional para investimentos em serviços de distribuição de água potável e saneamento básico nas regiões de praias, marítimas ou fluviais no território nacional”.
A estimativa do parlamentar é de que as receitas podem chegar a R$ 200 bilhões por ano. “Portanto, aquelas pessoas que estavam preocupadas com a preservação desses locais ou com o acesso a esses locais, estão plenamente atendidas com esse relatório”, afirmou.
Senador rechaça novo relatório
O senador Rogério Carvalho (PT-SE), que pediu vistas do relatório de Flávio, disse que a mudança proposta, ao prever que legalmente as pessoas terão acesso à praia, piora a ideia original do projeto. Para ele, a Constituição hoje não estabelece requisito para as pessoas terem acesso à praia, e o relator da proposta o condiciona ao plano diretor, o que pode ser ou não pode ser “livre acesso”.
Outra preocupação do senador sergipano é sobre os ricos, que mais têm terrenos de marinha, guardando e fazendo especulação imobiliária, ficam livres de pagar o laudêmio e de indenizar a União. “Porque aqueles que têm um imóvel, aqueles que moram em cidades costeiras, que têm um imóvel, nós somos favoráveis que sejam isentos e recebam este imóvel. Agora, o setor empresarial, que tem milhares de metros quadrados à beira-mar… Sem considerar o momento que nós vivemos do ponto de vista climático, ampliando-se a possibilidade de ocupação das áreas costeiras sem nenhum tipo de estudo”, criticou.
O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), afirmou que aguarda uma análise sobre o novo relatório do senador Flávio Bolsonaro a “PEC das Praias”, mas ressaltou que a posição continua contrária à proposta.
De acordo com Rogério Carvalho, o Ministério de Gestão e Inovação (MGI) está realizando um estudo sobre o tema porque o Brasil tem 8 mil quilômetros de área costeira e é preciso uma análise consistente para qualquer definição responsável sobre o assunto “para não atender a interesses específicos”. O senador não citou quais seriam os interesses.
Mobilização contra a PEC
O Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional tem feito uma mobilização contra a aprovação da “PEC das Praias”. De acordo com a organização, atualmente existem pouco mais de 560 mil terrenos de marinha cadastrados, conforme dados da Secretaria de Patrimônio da União (SPU). No entanto, estima-se que haja quase 3 milhões não cadastrados.
“Isso gera incertezas sobre como, e se, a transferência de propriedade será feita. Assim, a aprovação da PEC 03/22 pode causar um caos administrativo, devido à necessidade de regulamentações diversas, e a compulsoriedade da aquisição pode ser um fardo financeiro para muitos”, alerta.
O Grupo também defende que decisões como sobre esta PEC sejam participativas e envolvam as comunidades afetadas, especialmente povos e comunidades tradicionais que dependem das áreas costeiras.
“A falta de consulta adequada evidencia a necessidade de um diálogo aberto e inclusivo no processo decisório. Essas regiões são essenciais para a adaptação às mudanças climáticas e para a proteção de grande parte da população que vive no litoral. Por isso, é fundamental que a gestão das áreas costeiras seja feita de forma integrada e participativa, envolvendo a sociedade para buscar justiça socioambiental e manter praias livres de cercas ou muros”, ressalta em nota.
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