Pesquisadores do QualiGov e lideranças indígenas questionam Marco Temporal em carta publicada na Science
Por: Lucas Ferrante*
23 de novembro de 2025MANAUS (AM) – Na última sexta-feira, 1º de agosto, a prestigiada revista Science publicou uma carta do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (QualiGov), liderada por mim e coassinada por mais sete pesquisadores, além de lideranças dos povos Apurinã e Mura. A carta denuncia a ilegalidade e os riscos sistêmicos do chamado “marco temporal”, alertando para os efeitos devastadores da Lei 14.701/2023 sobre os direitos constitucionais dos povos indígenas, a biodiversidade e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (QualiGov) é uma rede multidisciplinar formada por pesquisadores de mais de 18 instituições brasileiras e internacionais, que atua na produção de diagnósticos, análises e na formação de gestores públicos nas áreas de governança, políticas para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e acesso à justiça.
A carta traz novos elementos ao debate, demonstrando que a Lei 14.701/2023, ao contrário do que alegam políticos da bancada ruralista e invasores de terras, não promove maior segurança jurídica. Em vez disso, ela tende a ampliar e agravar as violações aos direitos dos povos indígenas, ao legitimar práticas de coerção, intimidação e fragmentação territorial sob a ótica da impunidade.
Além de mim, Lucas Ferrante (USP/UFAM), a carta na Science foi assinada pelos pesquisadores Rodrigo Machado Vilani (UNIRIO), Natália Sátyro (UFMG), Vanessa Elias de Oliveira (Universidade Federal do ABC), Lizandro Lui (FGV), Cristiana Losekann (UFES), Eduardo Grin (FGV) e André Luiz Marenco dos Santos (Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Marenco, que também coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas para o Desenvolvimento Sustentável (INCT-QualiGov), declarou à Cenarium: “Recebemos com grande satisfação a contribuição de sete pesquisadores do INCT-QualiGov nesta carta. Nosso foco é a produção de conhecimento aplicado, com a sustentabilidade como eixo estruturante. Acompanhamos com extrema preocupação as recentes decisões do Congresso Nacional, especialmente no que se refere ao ‘marco temporal’ e ao ‘licenciamento ambiental’, que representam um grave retrocesso nas políticas ambientais e climáticas do país.”
Segue abaixo a tradução da carta:
Terras Indígenas do Brasil enfrentam retrocessos legais
Os povos indígenas são guardiões essenciais da resiliência climática e da biodiversidade, e as Terras Indígenas no Brasil são mais eficazes do que as Unidades de Conservação governamentais na prevenção do desmatamento. No entanto, o Brasil recentemente aprovou a Lei 14.701/2023 [anteriormente o Projeto de Lei PL490], que pode desmantelar proteções constitucionais indígenas de longa data. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, junto a partidos políticos de esquerda e ambientalistas, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar a lei. O Conselho Nacional de Direitos Humanos e três Relatores Especiais das Nações Unidas (ONU) apoiaram o questionamento. O STF derrubou o texto original e propôs uma nova versão conciliatória. No entanto, a decisão do STF contém concessões e brechas que causarão danos irreparáveis às comunidades indígenas e ao meio ambiente do Brasil. A lei emendada agora retorna ao Congresso, onde provavelmente será aprovada. Se a Lei 14.701/2023 for mantida, será impossível dissociar commodities brasileiras como soja, gado, minérios, petróleo e biocombustíveis de violações sistemáticas aos direitos indígenas. Países importadores devem reconsiderar acordos comerciais, incluindo o tratado Mercosul–União Europeia.
O texto proposto pelo STF, finalizado sem amplo consenso ou participação significativa dos povos indígenas, autoriza a polícia militar a remover comunidades indígenas de seus territórios tradicionalmente ocupados em casos de sobreposição legal — favorecendo, na prática, grandes proprietários, fazendeiros e grileiros — e legitima despejos violentos promovidos por parlamentares pró-agronegócio. A lei também permite o turismo, criando um precedente legal para outras atividades econômicas em Terras Indígenas, como a mineração, sem o consentimento prévio, livre e informado exigido pelo direito internacional. A decisão do STF ainda exige o envolvimento de governos estaduais e municipais nos processos de demarcação — um entrave administrativo que provavelmente dificultará o reconhecimento das terras.
A Lei 14.701/2023 também abre brechas legais que permitiriam a realização de grandes projetos como mineração, transporte e infraestrutura energética, caso sejam considerados de “interesse público”. Essas brechas violariam a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao permitir a implementação de tais projetos sem a consulta obrigatória às comunidades afetadas. Esse marco legal poderia legalizar 1132 projetos de mineração e cerca de 890 km² de garimpo ilegal de ouro, com impactos devastadores. As políticas contidas na decisão também facilitariam outros projetos em andamento, como as rodovias BR-319 e AM-366, perfuração de petróleo na Amazônia central, expansão da pecuária e mineração de potássio — agravando ainda mais as violações aos direitos indígenas por meio de coerção, intimidação e fragmentação territorial.
Como cientistas e representantes indígenas, destacamos que a implementação da Lei 14.701/2023 intensificará os conflitos legais e territoriais. A lei viola as obrigações internacionais do Brasil e, portanto, deve ser formalmente contestada com base na Convenção 169 da OIT, no sistema interamericano de direitos humanos e na ONU.
(*) Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).