Pesquisas por ‘Ratanabá’ no Google sobrepõem informações sobre crime contra indigenista e jornalista na Amazônia

Kuhikugu, no Xingu: a maior "cidade" já descoberta pelos arqueólogos na amazônia brasileira (San/Superinteressante)
Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS – O mundo voltou os olhos para a Amazônia, no mês de junho, e apesar de toda a repercussão sobre o assassinato do indigenista e servidor licenciado da Fundação Nacional do Índio (Funai), Bruno Araújo Pereira, 41, e do jornalista britânico, correspondente do “The Guardian”, Dominic Mark Phillips, 57, ocorrido no município de Atalaia do Norte, o assunto mais pesquisado, no Brasil, foi Ratanabá, a “cidade perdida na Amazônia”.

Ratanabá entrou em destaque após a divulgação de um estudo por parte da Dákila Pesquisas, que apontou a existência de uma antiga civilização em Apiacás, a 1.005 quilômetros de Cuiabá, datada há 450 milhões de anos, e que estaria sendo material de cobiça internacional, principalmente, após o anúncio de investimentos, na Amazônia, por parte do bilionário Elon Musk, durante visita ao Brasil, no fim de maio.

O instituto, fundado por Urandir Fernandes de Oliveira, já foi palco de outras polêmicas e estudos controversos envolvendo a ‘Terra Convexa’, ideia que usa princípios da Terra Plana e o ‘ET Bilu’, alienígena que teria vindo à Terra para compartilhar conhecimentos.

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Ex-secretário de cultura, Mario Frias, recebeu Urandir Oliveira em seu gabinete (Reprodução/Instagram)

Urandir chegou a visitar o gabinete de Mario Frias, ex-secretário de Cultura de Jair Bolsonaro, que na época, havia prometido preparar uma expedição ao local, mas foi impedido por problemas de saúde.

De acordo com a plataforma Google Trends, que mostra os mais populares termos buscados no site de pesquisas, no período de 5 de junho, data do primeiro relato de desaparecimento da dupla, até o dia 20, o termo “cidade perdida Amazônia” foi mais pesquisado do que “desaparecidos na Amazônia”.

Buscas por Ratanabá superaram pesquisas sobre desaparecidos na Amazônia (Reprodução)

No mapa gerado pela plataforma dos Estados, que fizeram as duas buscas, apenas Mato Grosso teve um número, minimamente, expressivo sobre o crime ocorrido na Amazônia, “desaparecidos na Amazônia” fez parte de 36% das pesquisas, enquanto, “cidade perdida Amazônia” correspondeu a 64%. Os dados não dão a quantidade exata de buscas, na plataforma, mas uma porcentagem baseada na popularidade do assunto.

Na comparação, seguindo de forma decrescente nas pesquisas, vem o Estado do Pará, Pernambuco e Bahia, todos com 84% para a cidade perdida e 16% para os desaparecidos. O Amazonas, palco do desaparecimento, buscou apenas 7% sobre os desaparecidos e 93% sobre a cidade perdida.

Nenhum dos Estados registrou busca acima ou igual a 50% sobre desaparecidos (Reprodução)

Os números tornaram-se ainda mais expressivos no dia 11 de junho, seis dias após o desaparecimento e data da chegada da Força Nacional à Atalaia do Norte para ajudar nas buscas pelos desaparecidos. Antes desse dia, lideranças indígenas e a imprensa, nacional e internacional, faziam pressão no governo federal, que até então não havia se pronunciado sobre os desaparecimentos.

Leia mais: Indígenas denunciam ao STF ineficiência nas buscas por desaparecidos

O geólogo amazonense Rafael Riker disse à REVISTA CENARIUM que as únicas “evidências” apresentadas pelo grupo de “pesquisadores” são imagens de um conjunto de linhas interpretadas por eles como ruas e avenidas de uma cidade perdida, mas que não podem ser usadas como prova da existência dessa civilização.

“É normal existirem estruturas conjugadas, como as que eles mostraram, e a gente sabe que há 450 milhões de anos não existiam humanos desenvolvidos, só algumas algas e trilobitas (animal marinho). E se essa cidade realmente existiu, nesse período, com a subida e descida das águas, não restaria evidência, atualmente”, explica. 

Imagem aérea divulgada por instituto mostra linhas na floresta (Reprodução/Internet)

De acordo com o especialista, as primeiras civilizações nas Américas são datadas entre 20 a 30 mil anos, “então, mesmo que os ‘pesquisadores’ tenham colocado um zero a mais e digam que data de 45 milhões de anos, ainda assim, não existiam humanos por aqui”, diz Riker.

Teoria da conspiração

As primeiras publicações e conversas sobre Ratanabá são de 2020, mas o caso só ganhou repercussão recentemente e para o geólogo, a perpetuação em massa sobre a cidade perdida não passa de uma “cortina de fumaça” para sobrepor o desaparecimento do indigenista e do jornalista na Amazônia.

“Essa história de Ratanabá se encaixa, perfeitamente, em uma teoria da conspiração. Primeiro, porque a primeira coisa que eles gostariam de esconder é sobre o desaparecimento do Dom e Bruno, então, quando as pessoas pesquisam ‘Amazônia’, acabam caindo em notícias sobre Ratanabá, que não tem nada a ver, como uma ‘cortina de fumaça’ mesmo. Segundo, eles usaram a visita do Elon, afirmando que ele não queria investir na região, só roubar as ‘riquezas’ da cidade perdida”, afirma.

Para o antropólogo, escritor, jornalista e professor universitário Paulo Queiroz a popularidade da “cidade perdida” escancara uma mazela nacional de apatia, de quem está mais ocupado em “conteúdos piadistas que vêm de governos maliciosos” do que em sentir misericórdia por quem perde a vida lutando pela Amazônia.

“Ratanabá, no sentido empregado, não passa de um trocadilho fantasioso, despropositado e eivado de malícias que subtraem a capacidade, em colossal parte dos brasileiros, de sentir humanização e empatia diante das desgraças humanas”, diz o especialista ao avaliar que o fanatismo político, acentuado nos últimos anos, é o responsável pela alienação da população fragmentada por ideologias opostas.

O antropólogo acredita que o “racha” entre esquerda e direita contribui para a contaminação da sociedade que se tornou desesperançosa. “A morte, agora, é palco para a miserável ausência de criatividade das pessoas, das lideranças, dos avaliadores políticos, que em nada contribuem para a reversão do quadro terrível que vivemos. Governos que brigam e que têm como “muro”, ou “cortina de fumaça”, os povos diversos do nosso País”, diz.

Para ele, a expectativa de futuro da população brasileira está cada vez mais fragilizada pela corrupção da esperança. “Creio que essas invencionices apenas cooperam para o mal do Brasil, assim como o fanatismo, o partidarismo exacerbado e a ‘burrificação’ dos discípulos da ignorância”, avalia o especialista.

Para Fabrício Ferreira Amorim, do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), o restante do País não tem noção do que é a Amazônia, não conhece as dificuldades e anseios de quem mora na região. Para ele, o distanciamento com o resto do País torna a Amazônia um solo fértil para a propagação desse tipo de conteúdo.

“É um colonialismo na internet produzido também pela ignorância. As questões da Amazônia são minimizadas para o resto do País” e isso pode ter consequências como a “destruição do bioma e das populações rurais, tradicionais, indígenas, ribeirinhos, quilombolas e outras”.

Fake news

O compartilhamento de desinformação não é regulamentado por lei, apesar de existir em tramitação no Congresso Nacional o projeto de Lei N° 2630, de 2020, conhecido como “Lei das Fake News”, que busca instituir a lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet.

“A fake news, quando é criada, ela é pensada, premeditada. Ela possui um alvo, seja uma pessoa ou um objetivo. Geralmente, essas fake news são criadas por um número de pessoas que confabulam essas fake news e disparam na internet”, explica o especialista em Direito Digital, o advogado Aldo Evangelista.

Além disso, o advogado explica que para categorizar fake news, é preciso também existir a participação de robôs, que utilizam do algoritmo para disseminar o tema tratado, mas também da participação de pessoas envolvidas na criação das desinformações.

Aldo explica que as milícias digitais, responsáveis pela criação de fake news e de “cortinas de fumaça”, não existem apenas no Brasil, mas no mundo. “Existem pessoas físicas que possuem algum interesse, e estão espalhadas pelo País, como no caso da utilização de Ratanabá, para ofuscar o holofote do jornalista e do indigenista assassinados na Amazônia”, diz.

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