Pílulas Bristol

Novo Airão, à margem direita do Rio Negro, está possivelmente assentada sobre um grande sítio arqueológico. Por falta de mais recursos, não tive condições de contratar uma equipe especializada para entender o passado que vive debaixo da minha nova casa, no centro da cidade. Assim, a arqueologia que pratico é rasa e amadora, mais para o ramo da garbologia (ciência que estuda o lixo).

Da última vez que fiz uma cova para minhas plantas, a escavadeira se chocou contra um pedaço de vidro, que eu costumo retirar do chão, em respeito às crianças que brincam alegres e descalças pelo parquinho. Não era um vidro qualquer, roto. Era um pequeno frasco, desses que não vemos mais nas farmácias, porque tudo foi substituído por plástico.

Lavando-o bem e retirando a terra compactada do seu interior, ele assumiu características translúcidas. De um lado lia-se ‘Pildoras de Bristol’ e do outro ‘Bristol’s pills’, sugerindo a internacionalidade do produto. As laterais mostravam que se tratava de um produto vegetal, produzido em Nova York. A pesquisa rápida no Google revelou que as Pílulas Açucaradas de Bristol fizeram muito sucesso no século passado, como laxativo mais leve e natural. Propagandas da época se referiam a ‘Um purgante econômico para toda a família’, ‘Recomendadas por médicos há mais de 75 anos’, ‘Tenha um frasquinho sempre a mão’, ‘Útil também para a dor de cabeça da constipação’. Estamos falando de fôlderes e cartazes que remontam ao ano de 1887.

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A ideia mágica de panaceias, fortificantes, suplementos ou medicações de origem vegetal, que nos livram de todos os males, sem efeitos colaterais, sempre foi e sempre será um argumento poderoso para os que se esquivam de uma vida e dieta saudáveis. São as pequenas doses de esperança que vêm em frasco. Viver os prazeres e as adições do cotidiano parece banal, quando podemos curar suas consequências com meras pílulas açucaradas, cujo frasco de vidro era provavelmente mais caro do que seu conteúdo.

Descobrindo, pelo acaso, que viviam, em minhas terras, pessoas constipadas, não me contive em prestar-lhes uma singela homenagem e reviver o presente, lembrando produtos vendidos como soluções ilusórias, que navegam pelos rios do Amazonas, como se ainda vendidos por um velho regatão.

O ‘Específico Pessoa’ ainda é amplamente vendido como um conjunto de tinturas botânicas extraídas de raízes e folhas de ervas medicinais, utilizadas como coadjuvantes no tratamento de picadas de cobras venenosas. É a única alternativa na ausência de médicos e de soros antiofídicos prontamente administráveis.

Extratos vegetais à base de silimarina ainda são sucesso de venda nas calhas do Purus e do Juruá, pela alta incidência de hepatites virais. Pequenas drágeas prometem proteger seu fígado, indicadas para o tratamento dos distúrbios digestivos que ocorrem nas doenças do fígado e das lesões tóxicas deste órgão. Seu uso off-label já se estendeu ao tratamento da malária e da bebedeira.

Andam meio fora de moda o ‘Biotônico Fontoura’, a ‘Emulsão Scott’, o ‘Óleo de Rícino’, o ‘Emplastro Sabiá’, o ‘Colírio Moura Brasil’ e a ‘Funchicória’, mas as vendas das ‘Gotas Binelli’ e do ‘Vick Vaporub’ turbinaram na pandemia de Covid-19, com pacientes que não paravam de tossir.

Penso que gotas, emulsões, emplastros ou biotônicos já sejam por si só nomes ultrapassados, mas que exercem grande pressão publicitária sobre a população mais carente e desinformada, sobretudo quando acompanhados de nomes garbosos. Mesmo minha família, repleta de estudiosos, não conseguiu abandonar o ‘Leite de Rosas’, o ‘Leite de Colônia’, a ‘Pomada Minâncora’ e o ‘Hipoglós’. São marcas impregnadas na nossa cultura, cujos emolientes nos interessam menos do que a marca consolidada pela experiência popular e pelos conselhos firmes das nossas avós.

Em um exercício de arqueologia reversa, vislumbro o que farão com o lixo que abandonei. O que pensarão os que vierem depois de mim? Como serei julgado? Os detalhes mais sórdidos da minha vida íntima serão revelados e expostos aos curiosos. A garbologia destrói nossa privacidade e revela muito desta curta passagem pelo planeta, desmascarando reis, rainhas, faraós, mas sobretudo os homens comuns.

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(*)Médico Infectologista

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