Poliamor, trisal: na contramão da monogamia, relacionamento aberto tem sido constante em séries de TV

Séries teen questionam a monogamia (Arte: Gustavo Amaral)
Com informações do InfoGlobo

RIO – Triângulos amorosos são fundamentais na geometria das séries de TV. Na primeira versão do hit teen “Gossip Girl”, de 2007, o motor da trama era a disputa entre as ricas nova-iorquinas Blair e Serena pelo bonitão Nate. Na nova versão, do ano passado, parecia que a dinâmica se repetiria com os personagens Audrey, Max e Aki. Só que não: quebrando expectativas e paradigmas, o triângulo virou trisal, lance que gerou elogios da crítica e identificação do público.

Romper com paradigmas da monogamia é um recurso cada vez mais comum nas séries, especialmente naquelas voltadas para jovens — além de “Gossip Girl” (HBO Max), variações desta história surgem em produções como “Por que as mulheres matam” (Globoplay), “Elite”, “Wanderlust” (ambas da Netflix) e a nacional “Lov3” (Prime Video), lançada este ano. Para especialistas, é reflexo do que já ocorre fora das telas.

“A TV não faz revolução. Normalmente, mostra-se alguma coisa que já tem algum grau de aceitação na sociedade”, pontua Lúcia Loner Coutinho, doutora em Comunicação pela PUC-RS. “Há também uma função didática: apresentar a situação para quem tem menos acesso à informação e, a longo prazo, ajudar no processo de compreensão do outro. Sem contar que a representação é importante.”

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Para Felipe Braga, criador e diretor da série brasileira “Lov3”, discutir esse tema em produções audiovisuais é importante como “exercício de tolerância, empatia e autoconhecimento”:

“Os jovens de hoje se pautam por uma premissa simples: a de que um indivíduo tem o direito de ser absolutamente o que quiser. Questionar padrões significa pôr em prática essa premissa, exercitando-a cotidianamente, o que não é necessariamente simples ou indolor. A juventude contemporânea parece sobretudo disposta a discutir esses temas sem medo. A experiência dos personagens na tela serve para nos indicar caminhos, para entendermos que não estamos sozinhos em nossas angústias.”

Se antes a cultura pop, principalmente a made in Hollywood, moldava e refletia o modelo de amor romântico, agora ela abraça a realidade de que 43% dos millennials descartam a relação monogâmica como ideal, segundo levantamento de 2020 feita pelo instituto de pesquisa YouGov.

“O amor é uma construção social. Todo mundo pode ter relações não monogâmicas e, no momento, está se abrindo espaço para que cada um escolha sua forma de viver”, diz Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora de 14 livros sobre relacionamento amoroso, entre eles “Novas formas de amar”. “Se uma pessoa quiser ficar casada 40 anos e fazer sexo só com o seu parceiro está tudo certo, desde que essa monogamia seja espontânea, o que é raro. Se daqui a 30 anos as relações não monogâmicas forem predominantes, tudo muda de figura.”

Voo solo

O conceito consagrado de poliamor é a possibilidade prática de amar e ser amado por várias pessoas, com todos os participantes confortáveis nessa situação.

Cena da série brasileira 'Lov3', que estreou em 2022 — Foto: Divulgação
Cena da série brasileira ‘Lov3’, que estreou em 2022 — Foto: Divulgação

Mas, naturalmente, a coisa não precisa ser tão fixa. Há ainda o poliamor solo ou solopoli, ou seja, alguém que está sempre livre para namorar quantas pessoas sentir vontade e, ao mesmo tempo, não se prender a elas, sem necessariamente viver sob o mesmo teto ou construir uma família.

Mas nada é uma regra e tudo pode mudar de acordo com as relações que se formam pelo caminho, como explicam ao GLOBO Isane Farias, Íris Ribeiro e Igor Almeida.

Moradores de Salvador, os três se consideram “poliamoristas com relação livre”, formam um trisal desde 2019 e moram juntos. Inicialmente, Isane e Igor eram um casal heterosexual que resolveu abrir o relacionamento para novas possibilidades. Assim Isane conheceu Íris e as duas começaram se encontrar (sem Igor). Só mais tarde Íris também se conectou com Igor e, hoje, os três têm um relacionamento livre, ou seja, os três podem ter relacionamentos com outras pessoas. A base de tudo para eles é a conversa.

“É muito sobre liberdade e autonomia”, conta Íris. “A aceitação da família foi um pouco difícil, e a gente sofre ainda mais porque além de trisal, somos livres.”

Luta por reconhecimento

A soteropolitana Isane acrescenta que é importante fazer o exercício de não hierarquizar as relações. Segundo ela, todas as possibilidades de relacionamento têm mais a ver com estar emocionalmente disponível para viver um amor do que com o sexo propriamente dito.

Enquanto isso, Danilo vive a não monogamia de maneira diferente do trio de Salvador. O morador de São Paulo também está em um trisal, mas os três só se relacionam entre si. Assim como Isane e Igor, que já mantinham um relacionamento, Danilo e o marido, César, acabaram se interessando por uma terceira pessoa, Heriberto, e então, decidiram embarcar neste novo arranjo. Nas datas comemorativas, feriados, viagens e festas em família, os três estão sempre juntos.

Cena da série 'Elite' — Foto: Divulgação
Cena da série ‘Elite’ — Foto: Divulgação

Este é o segundo relacionamento a três que Danilo e César vivem. O primeiro durou dois anos; este acaba de completar 12 meses.

“Nunca achamos que a terceira pessoa é a solução de um problema. Funciona justamente porque nossa base funciona”, conta Danilo. “No início, amigos próximos perguntavam se estava tudo bem… Era difícil aceitar. Mas é uma relação leve, de equilíbrio, cuidado e respeito uns pelos outros.”

São histórias como essas que servem de inspiração para a ficção. Em “Gossip Girl”, Audrey e o colega Aki namoram desde a pré-adolescência e, no meio do caminho, se veem apaixonados e interessados pelo melhor amigo, Max. Já em “Elite”, tudo começa como um jogo de sedução: Polo sentia prazer em saber que Carla estava sendo amada e desejada por outro, no caso Christian. A interação à distância foi tamanha que os três passaram a se relacionar. Em “Por que as mulheres matam”, disponível no Globoplay, Taylor é uma advogada bissexual que mantém um casamento aberto com o escritor Eli. Até que ela se apaixona por Jada e a leva para morar com os dois, formando um trisal.

App específico

Mesmo que as novas formas de amar estejam sendo representadas em seriados populares, o preconceito e o medo da exposição ainda assustam. A reportagem, por exemplo, encontrou dificuldade em achar quem aceitasse compartilhar suas histórias.

Uma saída para quem quer manter a discrição tem sido os aplicativos específicos para quem busca uma relação poliamorosa. Ysos, Feeld, 3Fun e Pitanga são algumas opções. Apesar dessas plataformas serem especificamente para adeptos e/ou interessados em relações não monogâmicas, é comum que ainda assim os usuários se escondam.

Ao se cadastrar no Pitanga, por exemplo, é normal ver fotos sem rostos ou de paisagens, além de identificações de usuários que não refletem os verdadeiros nomes das pessoas. O app lançado em 2016 conta hoje com 250 mil usuários, diz o idealizador da plataforma, Venicios Belo. Segundo ele, entre os perfis, 45% são de casais, 35% de homens e 20% de mulheres. A faixa etária predominante vai de 24 aos 40 anos.

“Compreendo que o amor é muito maior do que a gente pode imaginar”, opina Venicios. “O que temos percebido é que cada vez mais casais têm se registrado em busca de outros amores. As pessoas estão se entregando a viver as relações.”

Para Regina Navarro Lins, questionar a monogamia passa pela busca por individualidade. E esclarece que, sim, dá para amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo.

“Tanto romanticamente quanto eroticamente. Muitos se sentem na obrigação de fazer uma escolha e isso gera conflitos e sofrimento”, diz a pesquisadora. “Acredito que, daqui a um tempo, vamos ver formas de viver totalmente diferentes das que fomos ensinados.”

Criador da série “Lov3”, Felipe Braga também mira o futuro:

“Falar de relacionamentos não monogâmicos na série é uma oportunidade de discutir uma sociedade pós-patriarcal, em que a política dos afetos e corpos legitima outros modelos de relação, de desejo e de família. Mas sem jamais perder de vista que deve persistir o respeito pelo outro”.

Ilegal, mas existe

Um ponto que dificulta o reconhecimento das relações poliafetivas é a falta de legislação que as protejam enquanto instituição familiar. Exemplo: no último domingo, um trisal de Londrina, no Paraná, formado por Maria Carolina Rizola, Douglas Queiroz e Klayse Marques teve um filho. Agora, Maria e Douglas lutam na Justiça para ter o nome de Klayse registrado na certidão de nascimento da criança como mãe afetiva.

O advogado César Fonseca fez seu trabalho de conclusão de curso na UFRJ sobre a possibilidade jurídica de uniões poliafetivas. Ele ressalta que “a poliafetividade não é legal, mas é fática, está no dia a dia”. Isane, Íris e Igor, por exemplo, já vivem juntos como família. E pensam em ter filhos daqui uns anos.

“O direito nasce da necessidade das pessoas. Essas pessoas vivem algo que não é abordado na legislação, mas que, no fim das contas, não traz prejuízo a ninguém. E mesmo assim o Estado se recusa a prestar qualquer tipo de proteção a elas”, desabafa César, explicando que conviveu com amigos que vivem na condição de família poliafetiva. “Outro ponto-chave é a questão da autonomia da vontade. Elas vivem naquela situação e se consideram uma família. Não é o Estado que tem que bater na porta delas e dizer que não é.”

Cinco passos rumo ao poliamor

Muitas dúvidas surgem quando se deseja adotar a não monogamia. Não há “script” a ser seguido, mas especialistas e poliamoristas destacam alguns pontos que acreditam ser importantes para quem pensa em optar por este formato de relacionamento.

  1. Pesquise. É importante buscar informação sobre a não monogamia. Ler livros, ouvir podcasts, seguir páginas que falam do tema e, se possível, conhecer exemplos próximos.
  2. Palavra. Processo de autoconhecimento, o olhar para si, para entender quais são seus desafios, o que você está disposto a viver e quais os seus limites.
  3. Falar mesmo. É preciso manter uma comunicação constante com os integrantes da relação. Expressar os medos, vulnerabilidades, inseguranças. Assim se constrói uma parceria por meio do diálogo.
  4. Rede de apoio. Uma rede de apoio é fundamental. Busque pessoas que acreditem na forma do poliamor, para ter trocas sobre as experiências.
  5. Paciência. Será um relacionamento construído passo a passo. Afinal, vivemos em uma sociedade monogâmica, e a desconstrução do padrão leva um tempo. Não se cobre, e procure não cobrar os outros.
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