Primeiro gestor a defender vacina foi mulher: imperatriz Catarina, a Grande

Imperatriz Catarina II da Rússia, considerada uma das maiores monarcas de seu tempo (Reprodução/ Internet)

Priscilla Peixoto – Da Revista Cenarium

MANAUS — Educada, culta, popular apoiadora e incentivadora da ciência e das artes, assim foi Catarina, a Grande, (1729-1796). A primeira mulher dentre as cortes europeias e a primeira pessoa, na Rússia, a se submeter a uma inoculação (versão inicial da vacinação) para se imunizar contra a varíola, que assolava o país no século 18. O ato da monarca contemporânea do iluminismo — tornava, predominante, o pensamento científico racional — que se colocou como exemplo e confiou na eficácia da ciência, para o bem de seus súditos, a tornou um dos principais símbolos na luta contra o mal que se alastrou pelo mundo e matou milhões de pessoas.

Na leitura da jornalista e cientista política Liege Albuquerque, as ações de Catarina vêm de encontro com as definições de Max Weber, que fala sobre a figura de lideranças carismáticas propensas para o bem ou para o mal. Para a cientista, o Brasil, atualmente, testemunha diversos episódios de negacionismo, em tempos de Covid-19, e Catarina, diferente do atual líder maior do País, tomou para si a responsabilidade, considerando uma ‘barbárie’ morrer da doença no século 18.

“A liderança carismática sempre existiu para o bem e para o mal e isso Max Weber explica. No caso de déspota, que inclusive conheço a história, foi usada para o bem. Ela foi uma excelente líder e uma grande mulher influenciando e direcionando seu povo para os caminhos do avanço, extremamente importante para uma nação”, declara a Liege.

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Pintura de Catarina, a Grande (Reprodução/ Dmitry Levitzky)

A cientista política compara a conduta positiva de Catarina com a atual gestão do Brasil. Na contramão da déspota da Rússia, a maior figura de liderança brasileira influencia de modo negativo a sociedade quando o assunto é incentivo à ciência e consciência que, em tempos pandêmicos, a imunização é essencial, como bem acreditou a imperatriz no século 18.

“É óbvio que se Bolsonaro usasse a influência e liderança carismática a favor da ciência e da população teríamos um índice maior de pessoas vacinadas nestes País e não seríamos testemunhas de tantas posturas negacionistas, o que, inclusive, interfere na imagem do Brasil perante o mundo. Não é saudável”, diz a profissional.

Difusão do saber

Na perspectiva do cientista social e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Gilson Gil, ao se assumir defensora da vacinação contra doenças infecciosas, especialmente a varíola, Catarina, a Grande, se consagra como uma das principais figuras centrais na difusão do saber e na crítica aos preconceitos e obscurantismos.

Ele ressalta que o século 18 foi das luzes, da ciência e da razão. Nesse contexto, grandes líderes, filósofos, políticos e militares eram adeptos desses ideais ilustrados. Era o “despotismo esclarecido”, embora reis nada republicanos eram defensores da ciência e dos avanços técnicos. Assim como a cientista política Liege Albuquerque, o cientista social atenta para o negacionismo em tempos atuais.

“Hoje, vemos como recrudesceu o obscurantismo, na forma do negacionismo e nas teorias conspiratórias, que falam em chips implantados, nova ordem, globalismo e outras lendas urbanas contemporâneas. Combater tais obscurantismos, favorecer ações críticas e reflexivas que respeitem a liberdade, a vida e a busca de um mundo mais fraterno, como nossos antepassados iluministas, é uma prioridade política e ética de nossa sociedade”, ressalta.

Carta encontrada

Em novembro de 2021, uma carta escrita por Catarina, datada de 20 de abril de 1787, (época que surgiram os primeiros procedimentos de inoculação/ vacinação contra a varíola) ficou em exposição na Galeria de Moscou durante todo o mês. A correspondência, até então em posse de um colecionador não identificado, comprovava ainda mais como Catarina era visionária.

No documento, endereçado ao conde Pyotr Rumiantsev, de uma província onde hoje é situada a Ucrânia, a imperatriz russa pede para que toda população da região seja imunizada contra a varíola, a peste da época. “Uma das tarefas mais importantes deve ser a introdução da vacinação contra a varíola, que, como sabemos, causa grandes danos à população em geral”, consta um trecho da carta da imperatriz ao conde.

Em outra escritura separada destinada ao rei prussiano Frederico, o Grande, também é possível encontrar trechos onde a Catarina fala da autoinoculação para servir de maior exemplo e incentivo ao povo perante à eficácia do imunizante.

“Como eu poderia introduzir a vacinação contra a varíola sem dar um exemplo pessoal?” (…) Devo permanecer em perigo real, junto com milhares de pessoas, ao longo da minha vida, ou devo preferir um perigo menor, muito breve, e assim salvar muitas pessoas? Escolhendo este último, eu estava selecionando o melhor curso”, confessou a déspota.

Foto da carta escrita por Catarina II ressaltando a importância da vacina (Reprodução/ Gavriil Grigorov/TASS/Getty Images)

Análise histórica

Na análise do historiador Adriano Magalhães Tenório, a carta é uma fonte histórica que retrata um tempo valioso com uma mensagem significativa, principalmente, em tempos de pandemia. Para ele, ao apontar a inovação da descoberta da inoculação, o documento revela as contradições que vivem os homens ao longo do tempo.

“Quando a gente entende, como historiador, que nossa função é investigar o passado a partir de perguntas e/ou fatos do presente, a gente olha um documento como esse, do século 18, e se questiona os motivos que hoje ainda vivermos tempos onde se nega a ciência”, comenta.

Ao olhar para o legado de Catarina, o historiador afirma que a monarca ocupa espaço para além da academia e pesquisa histórica e se torna um símbolo de aspiração para aqueles que almejam mudanças em vários cantos do mundo e, principalmente, no Brasil.

“Olhamos para o passado a partir de questões do presente. Interessante notar que em tempos como este de negação da ciência, avanço de autoritarismo e ataque as minorias – LGBTQIA+, negros e mulheres, onde o chefe do Estado nega a ciência, espalha notícias falsas e não se responsabiliza pelas números impressionantes de morte por Covid-19, ver uma mulher que entrou para história como uma das monarcas mais importantes da história da Rússia, se responsabilizou e deu exemplo ao seu povo, inclusive testando uma técnica nova até então pouco conhecida, salvando assim vidas é, sem dúvidas, o que muitos brasileiros gostariam nesse momento” considera o historiador.

Processo de Inoculação

Segundo relatos históricos, para testar a eficácia, no dia 12 de outubro de 1768, um médico chamado Thomas Dimsdale fez um corte em cada braço de Catarina e injetou material extraído das feridas/pus quase secas de um camponês, chamado Alexander Markov.

Dias depois, a imperatriz apresentou um quadro moderado de pústula pelo corpo, mas que desapareceram em uma semana. Depois do procedimento de sucesso, Dimsdale foi anunciado como ‘barão do Império Russo’, com uma pensão vitalícia de 500 libras anuais, além disso, o menino Alexander recebeu um título de nobreza.

“Meu objetivo foi, por meio do meu exemplo, salvar da morte meus muitos súditos que, não conhecendo o valor dessa técnica, amedrontados, estavam em perigo”, declarou a soberana em discurso para o Senado.

Em novembro do mesmo ano, mais de 100 nobres de São Petersburgo seguiram o exemplo da imperatriz e também se submeteram ao procedimento. Foram criados ‘postos de vacinação’ em diversas localidades do império. Registros históricos dão conta de que até o ano de 1780, em média, 20 mil pessoas já tinham sido vacinadas e no ano de 1800 mais de 2 milhões se imunizaram.

Thomas Dimsdale, médico que inoculou Catarina (Reprodução/ Internet)

Breve histórico

Antes de se tornar Catarina II ou Catarina, a Grande, a imperatriz da Rússia, nascida em Stettin, Prússia, norte da atual Polônia, no dia 2 de maio de 1729, se chamava Sophie Friederike Auguste, princesa de Anhalt-Zerbst, filha de Cristiano Augusto, príncipe de Anhalt-Zerbst, e da duquesa Joana Isabel de Holstein-Gottorp.

Aos 15 anos, foi para Moscou e readaptou a vida. Aprendeu outra língua, estudou e se rebatizou ortodoxa recebendo o nome de ‘Iekaterina Alekseievna’. Em 1745, casou com o herdeiro do trono da Rússia, chamado Pedro III, deu à luz dois filhos, o futuro czar Paulo I e a grã-duquesa Ana Petrovna, falecida ainda criança.

Com a morte da imperatriz Isabel da Rússia, tia de Pedro III, que fora criado como filho, pois Isabel, viúva de Pedro, o Grande, não tinha herdeiros. Pedro III subiu ao trono no dia 5 de janeiro de 1762 como czar Pedro III. Logo se aliou a Frederico II da Prússia.

Temendo a aliança, a esposa Catarina se uniu aos generais a desalojar Pedro III e entregar o poder a ela. Pouco dias depois, Pedro III foi assassinado. A partir de então, ela se torna imperatriz da Rússia, como Catarina II. Conhecida por ser uma líder esclarecida, a monarca mantinha contato com alguns dos filósofos notáveis da época, como os franceses Voltaire e Diderot, que entram para história por serem pensadores e disseminadores do Iluminismo, além de serem uns dos responsáveis pela enciclopédia.

Catarina II e Pedro III (Reprodução/ Internet)

Além da marcante história ligada à luta contra a varíola e de incentivo à ciência, Catarina financiou guerras em diversas fronteiras. Enquanto lutava contra Polônia, movimentou exércitos contra o povo turco em guerras que duraram quase 20 anos. Na ocasião, a Turquia cedeu à Rússia a costa setentrional do mar Negro e a península da Crimeia.

Outro feito da imperatriz foi em 1785, quando Catarina promulgou a ‘Carta da Nobreza’, abolindo impostos dos nobres (instituídos em 1720 por Pedro, o Grande). O reinado da monarca durou aproximadamente 36 anos. No dia 17 de novembro de 1796, a Grande faleceu em Tsarkoie Selo, próximo de São Petersburgo.

No livro ‘Catarina, a Grande: retrato de uma mulher’, lançado em 2012, pela editora Rocco, o escritor Robert K. Misse define a imperatriz como consolidadora das ações iniciadas por Pedro, o Grande. “Foi uma figura magistática na era da monarquia, a única que se igualou a ela em um trono europeu foi Elizabeth I, da Inglaterra. Na história da Rússia, ela e Pedro, o Grande, se destacaram pela capacidade e realizações em comparação com outros 14 czares e imperatrizes nos 330 anos da dinastia Romanov”, diz um trecho do livro.

Casos de Varíola

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), há 40 anos, mais precisamente no dia 8 de maio de 1980, a varíola foi declarada erradicada em todo o mundo. A doença, inclusive, até o momento, é a única enfermidade que afeta humanos sendo erradicada globalmente.

Estima-se que somente no século 20 o vírus matou quase 300 milhões de pessoas. A doença circulou e vitimou a população mundial por, pelo menos, três mil anos.

“Só sendo estúpido, ignorante e perverso para não chamar a responsabilidade para si e tomar uma iniciativa para conseguir a cura para uma doença que está matando milhares de pessoas de sua nação”, Catarina, a Grande.

Dica

Aos que desejam saber mais sobre a história de Catarina, a Grande, o Prime Vídeo tem disponível em seu catálogo duas temporadas da produção intitulada ‘The Great’, em tradução livre ‘A grande’.

Cartaz da série (Reprodução/Prime Vídeo)
Momento em que Catarina, interpretada por Elle Fanning, comete a autoinoculação (Reprodução/Prime Video)
Contemporânea do iluminismo, a monarca defendia a liberdade religiosa e incentivava a ciência (Reprodução/Prime Vídeo)

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