Procurador da República no AM rejeitou estudo científico sobre crise do oxigênio


Por: Lucas Ferrante

23 de novembro de 2025

No dia 9 de junho de 2024, protocolei uma denúncia formal junto ao Ministério Público Federal com base em evidências apresentadas em um estudo científico de minha autoria, em coautoria com o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e vencedor do Prêmio Nobel da Paz pelo IPCC, Philip Fearnside.

O artigo foi publicado no periódico internacional Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, do grupo Springer Nature. Resultado de uma investigação rigorosa, revisada por pares, o estudo aponta a responsabilidade do general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, bem como do ex-ministro da Infraestrutura — atualmente governador de São Paulo — Tarcísio de Freitas, pela crise de oxigênio que resultou em centenas de mortes evitáveis em Manaus durante a segunda onda da pandemia de Covid-19.

A pesquisa demonstrou que houve uma decisão política deliberada de utilizar uma rota terrestre mais lenta e ineficaz — a BR-319 — para o transporte de oxigênio hospitalar, ignorando rotas fluviais logísticas comprovadamente mais rápidas, seguras e viáveis. A estratégia adotada, conforme evidenciado no estudo, serviu ao propósito de justificar a reativação da rodovia, mesmo em detrimento da vida da população amazonense.

O estudo científico que embasa a denúncia foi submetido a processo de revisão por pares — um dos pilares da credibilidade científica internacional — e publicado em um dos principais periódicos da área de saúde e desigualdades raciais. Evidências produzidas sob esse rigor metodológico têm valor jurídico e podem ser reconhecidas como provas documentais em processos de responsabilização pública.

Denúncia:

Descrição: Denúncia ao Ministério Público Federal Exmo. Sr. Procurador-Geral da República, Eu, Dr. Lucas Ferrante, pesquisador e autor principal do artigo científico intitulado em português “A crise do oxigênio na Amazônia brasileira: como vidas e saúde foram sacrificadas durante o pico da COVID-19 para promover uma agenda com consequências de longo prazo para o meio ambiente, os povos indígenas e a saúde”, publicado no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities pelo renomado grupo Springer Nature, venho apresentar uma denúncia de improbidade administrativa, negligência na gestão pública e manipulação política de uma tragédia de saúde pública que agravou a falta de oxigênio durante a segunda onda de COVID-19 em Manaus. O artigo detalha as ações e omissões graves de Tarcísio de Freitas, ex-Ministro da Infraestrutura, e Eduardo Pazuello, ex-Ministro da Saúde, que resultaram em danos significativos à saúde pública e ao meio ambiente durante a crise de oxigênio em Manaus, Amazonas, no auge da pandemia de COVID-19 em janeiro de 2021. Fatos: 1. Crise de Oxigênio em Manaus: – Em janeiro de 2021, Manaus enfrentou uma crise severa de oxigênio, levando à morte de centenas de pacientes devido à falta deste recurso essencial. – A crise foi exacerbada pela decisão de transportar oxigênio por caminhões via a Rodovia BR-319, uma rota notoriamente intransitável durante a estação chuvosa, em vez de utilizar a rota mais eficiente e rápida por barcaças pelo Rio Madeira. 2. Ações e Omissões dos Denunciados: – Eduardo Pazuello: Como Ministro da Saúde, Pazuello foi informado com antecedência sobre a iminente segunda onda de COVID-19 que afetaria Manaus, havendo tempo hábil para providenciar recursos e insumos médicos necessários para enfrentamento da crise, como cilindros e oxigênio hospitalar. Sua omissão contribuiu diretamente para a escassez crítica e as consequentes mortes. – Tarcísio de Freitas: Como Ministro da Infraestrutura, Freitas promoveu a utilização da Rodovia BR-319 para o transporte de oxigênio, uma decisão logisticamente inadequada e que serviu mais para avançar interesses políticos e econômicos relacionados à reconstrução da rodovia do que para resolver a crise de saúde de maneira eficaz. Além disso, o DNIT e Ministro da Infraestrutura omitiram da população a rota mais eficiente e rápida por barcaças pelo Rio Madeira, apontando que a rota alternativa demoraria mais de 6 a 7 dias. Dados do estudo científico anexo indicam que, se o oxigênio tivesse sido enviado pelo Rio Madeira, este insumo essencial teria chegado a Manaus com pelo menos 44 horas de antecedência que via rodovia BR-319. Além de economizar cerca de 1,5 milhão de reais em comparação com o valor gasto na rota utilizada. 3. Consequências das Ações: – A escolha da rota terrestre atrasou significativamente a chegada do oxigênio, agravando a crise de saúde pública e resultando em mortes evitáveis. – O uso da crise de oxigênio como justificativa para promover a reconstrução da BR-319 representa um uso impróprio e manipulador de uma tragédia humanitária para fins políticos, ignorando alternativas logísticas mais seguras e eficientes. – Improbidade de superfaturamento Violação de Direitos e Normas: As ações e omissões dos denunciados configuram: – Improbidade administrativa: Violação dos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. – Negligência na gestão pública: Falta de planejamento e resposta adequada a uma crise anunciada. – Manipulação política: Uso indevido de uma crise humanitária para promover interesses políticos e econômicos. – A crise de oxigênio e a referida rota também foram utilizadas para acelerar as audiências públicas referente aos estudos ambientais da rodovia BR-319 excluindo os povos tradicionais afetados pelo empreendimento, como apontado por Ferrante et al. (2023), o que viola a convenção 169 da OIT a qual o Brasil é signatário e o Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. Em anexo, segue uma cópia do artigo científico “Brazil’s Amazon Oxygen Crisis: How Lives and Health Were Sacrificed During the Peak of COVID‐19 to Promote an Agenda with Long‐Term Consequences for the Environment, Indigenous Peoples, and Health” que fundamenta esta denúncia.

Solicitação: Solicito que o Ministério Público Federal: 1. Investigue as ações e omissões de Eduardo Pazuello e Tarcísio de Freitas durante a crise de oxigênio em Manaus. 2. Apure a responsabilidade criminal e administrativa dos denunciados pelas mortes e danos causados pela má gestão da crise. 3. Implemente medidas preventivas para evitar que crises futuras sejam manipuladas para fins políticos e para garantir que respostas a emergências de saúde pública sejam baseadas em critérios técnicos e científicos. 4. Garanta indenizações justas as famílias das vitimas, bem como pacientes com possíveis sequelas em decorrência da crise de oxigênio em Manaus.

Em 27 de dezembro de 2024, fui notificado sobre o arquivamento da denúncia.

A decisão de arquivamento, contudo, suscita questionamentos legítimos. Em nenhum momento anterior à emissão do parecer fui contatado pelo Ministério Público Federal para prestar esclarecimentos adicionais ou apresentar documentação complementar. Após ser notificado, apresentei recurso dentro do prazo legal, acompanhado da versão traduzida do artigo científico originalmente publicado em inglês. Ainda assim, o recurso foi ignorado.

Um dos argumentos utilizados no parecer foi justamente o fato de o estudo estar redigido em “língua estrangeira”, o que revela um grave equívoco sobre a prática científica internacional. Estudos científicos são publicados em inglês porque permitem ampla divulgação e avaliação global dos resultados. A publicação em periódicos internacionais com revisão por pares em formato duplo cego — em que autores e revisores não se identificam — garante rigor, imparcialidade e credibilidade. Esse formato exige que os dados estejam acessíveis a especialistas de diferentes países, assegurando que os achados sejam validados por uma comunidade científica internacional.

Ignorar evidências científicas robustas e um estudo publicado com reconhecido rigor metodológico é negligenciar o papel da ciência na proteção da vida e na responsabilização de agentes públicos. Quando instituições fecham os olhos para fatos documentados, colocam em risco a memória das vítimas e o futuro de uma sociedade que clama por justiça. O Direito também é uma ciência — construída a partir de métodos, interpretações fundamentadas e produção contínua de conhecimento por meio de doutrinas, jurisprudências e publicações especializadas.

Assim como nas ciências naturais e da saúde, os artigos científicos desempenham papel central na consolidação e atualização do saber jurídico. Rejeitar estudos científicos como fontes válidas de evidência ou de argumentação técnica é desprezar a própria lógica científica que fundamenta o Estado Democrático de Direito. Em uma sociedade guiada por princípios constitucionais, a integração entre ciência e justiça é não apenas desejável, mas indispensável para garantir decisões fundamentadas, éticas e socialmente responsáveis.

(*)Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Foi o primeiro autor e líder do grupo de pesquisa que previu a segunda onda de Covid-19 em Manaus, com estudos amplamente citados e publicados em periódicos internacionais. É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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