Procuradores da República veem inconstitucionalidades no ‘PL da Grilagem’

Da esquerda para a direita, o coordenador do Grupo de Trabalho (GT) de Reforma Agrária do MPF-AM, Julio Araujo, e a coordenadora da Força-Tarefa, Carolina Bragança. (Arquivo Pessoal)

Luana Dávila – Da Revista Cenarium

MANAUS – Após a repercussão negativa da Câmara Federal tentar colocar na pauta de votação o Projeto de Lei (PL) 2.633/2020, o ‘PL da Grilagem’, em meio à pandemia do Coronavírus, a proposta foi colocada em xeque pelos procuradores da República Julio Araujo e Ana Carolina Haliuc Bragança, nesta terça-feira, 19.

A inconstitucionalidade em determinados dispositivos do projeto, o avanço da pandemia nas florestas, as irregularidades do sistema de distribuição fundiária, a falta de diálogo com as populações tradicionais e o risco de prejuízo de R$ 2 bilhões aos cofres públicos estão entre os problemas apontados pelos procuradores. 

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À REVISTA CENARIUM, Julio Araujo, coordenador do Grupo de Trabalho (GT) de Reforma Agrária do MPF, afirmou que além do risco de disseminação do novo Coronavírus entre as florestas, não existe urgência no projeto e que há necessidade de se ouvir os setores envolvidos, antes de qualquer decisão.

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“Agora, se discute uma urgência que não existe em relação ao PL, embora seja um tema super relevante que envolve regularização de grilagem, ele demandaria um debate amplo e profundo com diversos setores da sociedade. O que não dá pra acontecer de forma açodada, de uma hora pra outra, como o que se pretende fazer, e muito menos no contexto da pandemia que a gente está vivendo, um cenário super complicado, onde as dificuldades são impostas pelo distanciamento social. Isso acaba implicando no Congresso, que não está funcionando da devida forma, afetando de forma desigual setores que deveriam ser ouvidos”, explicou.

Pandemia avança nas florestas

Ainda segundo o procurador, para piorar a situação, o contexto da pandemia tem avançado entre as florestas, principalmente sobre a Floresta Amazônica. “Se por um lado você percebe um aumento da omissão da fiscalização, ou seja, a desmobilização de toda uma estrutura no âmbito ambiental, de outro lado você percebe o aumento do desmatamento em índices nunca antes vistos”, chamou a atenção para o aumento exacerbado de 55% do desmatamento entre janeiro a abril deste ano e de 63,75% somente em abril.

“A pandemia, o desmatamento e a grilagem de terras públicas vem gerando um risco concreto de disseminação do novo Coronavírus para as comunidades da região e da Amazônia. Isso também é muito grave e não foi considerado. A MP foi editada em um contexto em que se pensava em Estado Mínimo – Estado em que se renuncia recursos e patrimônio público, mas que no contexto da pandemia a gente percebe que se precisa criar um conceito mais amplo sobre isso, como um estado que não renuncia a seu patrimônio”, pontou.

PL repete problemas da legislação

De acordo com Araujo, o Projeto nº 2.366 repete os mesmos problemas da legislação que vem desde 2009, da Lei 11.952, que foi alterada. Além disso, a lei é considerada complicada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ao analisar, em abril, a organização e a omissão dos órgãos de fiscalização.

“Há falta de transparência e análise sobre esses dados do projeto. Foram constatados problemas na declaração de uso de documentos como “CAR” e do próprio Sigef, onde a movimentação nesses sistemas veio fazendo com que os grileiros, que ocupam indevidamente terras públicas sem exercer qualquer tipo de cultura efetiva e sem ter regularidade ambiental, se valem dessas meras informações que constam desses sistemas para aquecer um mercado ilegal de terras”, disse Araujo, afirmando que o TCU constatou ainda várias sobreposições desses “títulos” sobre essas áreas e que precisa ser discutido a fundo, sendo um PL que reforça essa lógica.

Na amostra que analisou da Amazônia Legal, o TCU concluiu que houve uma renúncia de pelo menos R$ 1 bilhão de recursos públicos. Também foi constatada uma invasão de mais de 657 mil hectares de terras públicas. “Muitas vezes sem contrapartida, sem a observância nas cláusulas resolutivas. Em 95% dos casos, as cláusulas não foram observadas. Regularidade ambiental, prática de cultura efetiva ou pagamento das parcelas, por exemplo”, disse o procurador-geral.

Principais mazelas de regularização

A coordenadora da Força-Tarefa do MPF, Carolina Bragança, disse à REVISTA CENARIUM que o PL não enfrenta as principais mazelas do Programa de Regularização na Amazônia Legal, que foram identificadas pelo TCU, onde foram analisadas mais de mil parcelas, uma área de milhões de hectares e verificou pontos gravosos.

“Verificou que, diferentemente do que vem sendo colocado, houve um crescimento da área desmatada dentro das parcelas que foram tituladas pelo programa. As pessoas que receberam seus títulos de propriedade desmataram mais e não menos. Foram 82 mil hectares detectados de desmatamento dentro de parcelas tituladas”, destacou a procuradora-geral.

A estimativa de perda total das áreas ocupadas irregularmente é de mais de R$ 2 bilhões, o que deixa claro uma fragilidade no programa de regularização fundiária.

“Verificou-se que o programa funcionou como uma via de mão única. Aquelas pessoas que, de fato, tinham direitos às propriedades, conseguiram os seus títulos, mas nos casos em que as pessoas não tinham direito ao título de propriedade, o programa não serviu ou não funcionou para que o estado recuperasse a posse dessas áreas que estavam sendo irregularmente ocupadas”, explicou Bragança.

Outro ponto que favorece a revisão do PL 2.366 apontado pela procuradora-geral é a extensão da regularização fundiária para o Brasil inteiro e não apenas para a Amazônia.

“Não foi apresentada uma estimativa do que isso representa, por exemplo, em termos de perda de patrimônio público. Quando o programa foi criado e pensado para a Amazônia Legal, foi criado num contexto em que a gente tinha uma área distante dos centros consumidores com via de escoamento de produção escassa, população pobres – contexto especial ao restante do país. A regularização foi feita atribuindo a quem paga pela terra um valor baixo, usado como parâmetro, por parte dos assentados, chamado “valor da terra nua”, abaixo do valor de mercado. Quando esse parâmetro é estendido, precisa ser avaliado se é necessário que haja um subsídio àquele ocupante, tal como existe para Amazônia”, concluiu.

Nota Técnica

Um dos principais pontos de crítica sustentados na nota técnica da força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) cita análise do TCU em relação à execução do Programa de Regularização Fundiária na Amazônia Legal entre junho de 2009 e dezembro de 2017.

Entre outras conclusões, o TCU apontou que a execução do programa – que seria ampliado pelo PL 2.633/2020 para todo o País – funcionou para legitimar posses de quem tinha direito, mas não funcionou para retomar, em favor da União, as posses de quem estava irregular, beneficiando ocupantes ilegais.

A promessa de redução do desmatamento, como se vê pelos índices alarmantes de ilícitos ambientais nessas áreas, também ficou no papel.

Depois de examinar 1.287 lotes de uma área de 1,4 milhões de hectares em toda Amazônia Legal, o TCU chegou à conclusão de que nada foi feito para recuperar mais de R$ 1 bilhão em áreas irregularmente ocupadas identificadas nos sistemas de informação à disposição do programa, a chamada ‘grilagem eletrônica’, e que também não houve retomada e destinação de 887 mil hectares, no valor de mais de R$ 2,4 bilhões, referente a áreas cujos processos foram negados. Como não havia verificação de cumprimento das cláusulas exigidas, o programa acabou se tornando mero “carimbador” de documentos.

Acesse a nota técnica clicando abaixo:

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