‘Proibir é negar o debate’, diz ativista sobre projeto contra banheiros multigênero em Manaus

Proposta veio à tona, após um vídeo viralizar na internet expondo banheiros multigêneros em unidade do McDonald's. (Reprodução/Twitter)
Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium

MANAUS – Após a repercussão nacional do caso de banheiros multigêneros em uma unidade do McDonald’s, em Bauru, no interior de São Paulo, um Projeto de Lei (PL) apresentado na Câmara Municipal de Manaus (CMM) nessa quarta-feira, 17, quer proibir em estabelecimentos públicos e privados na capital amazonense a instalação e o uso de banheiros multigêneros — ou seja, aqueles que podem ser usados por qualquer pessoa.

Para ativistas do movimento LGBTQIA+, propor a pauta significa fugir do debate. “Proibição não pode ser uma solução. É negar o debate”, declarou a ativista dos Direitos Humanos e membro do Coletivo Difusão Michelle Andrews, em entrevista à REVISTA CENARIUM.

O texto é de autoria do vereador e pastor evangélico João Carlos (Republicanos), que justificou a possibilidade de a medida ser um risco à segurança das mulheres. Segundo o parlamentar, sem citar o público LGBTQIA+, o banheiro multigênero pode ser utilizado por homens e mulheres simultaneamente e que usuárias estariam mais vulneráveis a casos de violência e assédio sexual, com a implementação desses espaços. Para ele, proibir a instalação dos sanitários vai garantir o direito à preservação da privacidade.

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Vereador João Carlos (Republicanos) protocolou projeto de lei nessa quarta-feira, 17, na Câmara Municipal de Manaus. (Foto: Divulgação)

“O uso simultâneo de banheiros por homens e mulheres amplia o risco de abusos sexuais em relação aos banheiros individuais e, sob a ótica da segurança, esse projeto visa a inibir a prática de abuso sexual, como estupro em decorrência do uso simultâneo por homens e mulheres de banheiros em ambiente público e privados”, diz trecho do projeto.

No projeto, o vereador propõe ainda que os banheiros para homens e mulheres devem conter a identificação de cada gênero. Nos estabelecimentos em que não é possível a instalação dos recintos específicos para cada gênero, fica autorizado o uso de forma alternada e individual. Somente pais e responsáveis por crianças, pessoas com necessidades especiais e idosos poderão utilizar simultaneamente os banheiros.

Debate

O debate sobre a utilização de banheiros multigêneros veio à tona na semana passada, após um vídeo viralizar na internet no qual uma mulher aparece, aparentemente revoltada, chamando o McDonald’s de comunista por conta de instalações sanitárias unissex na unidade de Bauru, em São Paulo.

Os banheiros, apesar de serem de uso individual no estabelecimento, chamaram a atenção da mulher e fez a prefeita Suéllen Rosim (Patriota), de Bauru, autuar a lanchonete, alegando o descumprimento de regras do Código Sanitário.

“A Vigilância Sanitária esteve no local e as exigências do código sanitário do município não estão sendo cumpridas, portando (sic) as providências foram tomadas!”, disse a prefeita, no Twitter, sem especificar quais foram as providências.

Fuga do debate?

De acordo com dados da pesquisa Dossiê Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020, divulgado em 21 de janeiro deste ano, o Brasil é o país que mais matou transexuais no mundo, no ano passado. Ao todo, foram 175 assassinatos de pessoas trans registrados em 2020, o equivalente a uma morte a cada dois dias. A quantidade superou o número de 2019, que foi de 124 assassinatos.

Segundo o levantamento, travestis, mulheres e homens trans têm seus direitos básicos violados diariamente e utilizar o banheiro público ainda é um entrave. Somente no ano passado, 9% das pessoas trans no Brasil relataram ter sofrido alguma violação quanto ao direito básico de usar o banheiro correspondente à identidade de gênero que se identificam.

Para a ativista dos direitos humanos Michelle Andrews, aliada do movimento LGBTQIA+ e membro do Coletivo Difusão, proibir a instalação e o uso de banheiros multigêneros não pode ser uma solução e significa fugir do debate sobre o tema. À REVISTA CENARIUM, a militante afirmou que esses recintos visam a combater a violência contra a população trans.

“Essa proposta (da CMM) é mais um reflexo de como a nossa Câmara Municipal não está mais interessada em problemas reais. Não reflete as necessidades da população da cidade”, declarou Michelle.

Michelle Andrews é ativista dos Direitos Humanos e membro do Coletivo Difusão. (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)

A ativista salienta que a questão dos banheiros multigêneros é essencial para uma vida digna à população trans e que não causa impacto nenhum proporcionalmente ao conjunto da sociedade. “Já essa proposta é um ataque direto. Significa que há um parlamentar que julga que um tema que não está causando problema nenhum na cidade, mas que gera mídia, principalmente em uma base conservadora, decidiu fazer uso de seu mandato para criar inimigos imaginários”, reiterou.

Ruan Wendell, presidente do movimento Unegro Amazonas e diretor da União Nacional LGBT do Amazonas, reiterou à REVISTA CENARIUM que o Brasil é um país laico e que é preciso garantir o acesso das pessoas trans a banheiros multigêneros. Para ele, esses locais devem ser um direito garantido a esse público.

“Não poderíamos esperar menos da bancada evangélica, mandatos legislativos são para servir à sociedade, independente do seu gênero, raça ou cor. Sobre esse caso, especificamente, a transfobia está explícita nas atitudes do vereador”, explanou o ativista.

Ruan Wendell é presidente do movimento Unegro Amazonas e diretor da União Nacional LGBT do Amazonas (Foto: Arquivo Pessoal)

Para Ruan Wendell, ações afirmativas, públicas ou privadas, vocacionadas a combater opressões históricas, sistemáticas e estruturais, como a criação de banheiros “multigêneros” não devem ser vistas como suspeitas ou indesejadas, mas como imperativos da igualdade na nossa sociedade.

“O uso de banheiros por transgêneros, de acordo com o gênero que estes se identificam, encontra amparo nos direitos da personalidade e na dignidade da pessoa humana, previstos na Constituição Federal. Saliento que, na defesa do estado democrático de direito e de uma sociedade plural e diversa, não é admissível que as instituições reproduzam discriminação e comportamentos de um grupo dominante sobre uma minoria”, ponderou.

O diretor da União Nacional LGBT do Amazonas lembra ainda que a discussão sobre gênero também já foi tema de debate no Supremo Tribunal Federal (STF). “Os municípios que visavam ‘à censura’ no debate sobre identidade de gênero e orientação nas escolas tiveram a sua inconstitucionalidade declarada pela nossa Corte Suprema”, concluiu Wendell.

Confira o Projeto de Lei 615/2021 do vereador João Carlos:

Confira o Dossiê Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020:

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