‘Racismo ambiental’, diz liderança de favela sobre projetos da COP30


Por: Fabyo Cruz

30 de junho de 2025
‘Racismo ambiental’, diz liderança de favela sobre projetos da COP30
Vila da Barca, em Belém (Foto: Sandro Barbosa/Cenarium)

BELÉM (PA) – Há mais de duas décadas, a Vila da Barca, em Belém (PA), uma das maiores comunidades sobre palafitas da América Latina, espera pela conclusão de um projeto de urbanização que prometeu substituir palafitas por casas de alvenaria. Com o anúncio da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) na capital paraense, os moradores imaginavam que a promessa finalmente seria cumprida. Mas, segundo as lideranças locais, as melhorias ficaram restritas às áreas “nobres” da cidade.

“A COP30 era para ser uma oportunidade para transformar a cidade e deixar um legado para os moradores, em especial os que vivem nas periferias. Mas o que a gente está acompanhando são mudanças significativas em lugares que já eram melhorados, nos bairros nobres. E aqui onde a gente mora? Não chega nada?”, questiona a educadora popular Inêz Medeiros, de 37 anos, que é uma das mais ativas lideranças comunitárias da Vila da Barca.

Com população estimada entre 4 mil a 5 mil pessoas, segundo censo comunitário de 2020, a Vila Barca está situada às margens da baía do Guajará, no centro expandido da capital paraense. Ainda assim, sofre com falta de saneamento básico, moradias precárias, atendimento de saúde limitado e insegurança fundiária.

A Vila da Barca tem entre 4 mil a 5 mil habitantes (Sandro Barbosa/CENARIUM)

O projeto de urbanização, iniciado em 2001, previa a substituição das palafitas por unidades habitacionais em alvenaria. De acordo com os moradores, a obra foi interrompida sem conclusão. “A maioria dos moradores não reformam suas casas porque esperam por um projeto que nunca termina. Outras, sem alternativa, mexem como podem. Aqui tem casa desabando por falta de estrutura. Como cobrar educação ou trabalho digno de alguém que nem parede tem em casa?”, pergunta Inêz.

Inêz Medeiros, de 37 anos, educadora popular e uma das mais ativas lideranças comunitárias da Vila da Barca, critica projetos da COP30 (Sandro Barbosa/CENARIUM)

Moradores da Vila da Barca ouvidos pela CENARIUM afirmam que os investimentos públicos voltados para a COP30 têm acentuado desigualdades históricas em Belém. Enquanto as obras avançam nas áreas centrais, populações periféricas continuam cobrando o acesso a direitos básicos. Para eles, a seleção dos locais beneficiados revela uma política urbana excludente, que reforça a segregação às vésperas do evento internacional.

Contrastes

Inêz critica o tratamento desigual entre bairros centrais e periféricos. Ela compara os R$ 310 milhões destinados ao Parque Linear da Doca, no bairro do Reduto, com os R$ 110 milhões necessários para concluir o projeto habitacional da Vila da Barca, no bairro do Telégrafo – verba que, segundo ela, ainda não foi garantida pelo poder público. Vale ressaltar que a distância entre os dois locais é de apenas 2,2 quilômetros.

“Eles chamam de Parque Linear quando é no Umarizal ou na Doca, mas quando é na periferia, como no canal do Tucunduba, o nome muda. Isso mostra como o discurso se adapta ao território. Parece que as intervenções são feitas para agradar quem já tem tudo, enquanto a gente segue sem água tratada, esgoto ou assistência”, afirmou.

Campo de futebol da Vila da Barca com prédios ao fundo (Foto: Sandro Barbosa/CENARIUM)

Combinando área portuária e prédios modernos, o Reduto, onde fica a chamada “Nova Doca”, é um dos bairros mais valorizados pelo mercado imobiliário, especialmente ao longo da avenida Visconde de Souza Franco – onde está o Parque Linear. A obra é fruto de uma parceria entre os governos estadual e federal, por meio da Itaipu Binacional. O projeto inclui 1,2 quilômetros de canal com drenagem, urbanização, passarelas e novas comportas para controle da maré, com o objetivo de evitar alagamentos.

Dados recentes divulgados pela Secretaria de Estado de Obras Públicas (Seop) informaram que a execução do Parque Linear está 82% concluída. Tapumes das quadras 1 a 4 foram removidos e os trechos recebem acabamento, paisagismo, instalação de equipamentos públicos, além de plantio de árvores e recapeamento asfáltico.

Parque Linear da Doca (Leonardo Macêdo/Seop)

Diante das ausências históricas e dos impactos das obras recentes, os moradores reafirmam o desejo de serem protagonistas da transformação de seu território. “A gente não é contra as obras. A gente só quer ser incluída nos benefícios que estão sendo feitos para a cidade – e que aqui nunca chegam”, diz Inêz.

‘Racismo ambiental’

A comunidade também denuncia a instalação de uma estação elevatória de esgoto do bairro do Reduto dentro da Vila da Barca. Segundo os moradores, a obra não contempla o tratamento do esgoto da própria comunidade e foi iniciada sem consulta prévia. “Isso é racismo ambiental porque essa estação elevatória de esgoto recebe os dejetos de um bairro considerado nobre, mas não beneficia a comunidade pobre. Só traz o problema”, afirma Inêz.

Estação elevatória de esgoto do bairro do Reduto na Vila da Barca, no Telégrafo (Sandro Barbosa/CENARIUM)

Outro ponto levantado pelos moradores é o despejo de entulho das obras da Doca em áreas da Vila da Barca. “Estão transformando nossa área em depósito de entulho para poder valorizar áreas nobres. Enquanto isso, dizem que não há recurso para concluir a urbanização da Vila da Barca. Por que não somos prioridade?”, questiona Enêz.

Resistência

Apesar das dificuldades, a Vila da Barca é também território de resistência. Projetos sociais como a Barca Literária, o Museu da Vila e a Comissão Solidária surgem como alternativas de organização comunitária, educação e valorização do território. A Barca Literária, por exemplo, atende crianças e adolescentes com ações voltadas à leitura, cidadania climática e educação antirracista. “Queremos que essas crianças ocupem espaços que historicamente lhes foram negados”, diz Inêz.

Criança brinca de papagaio na Vila da Barca (Sandro Barbosa/CENARIUM)

O músico e educador Pawer Martins, de 34 anos, morador da Vila da Barca e coordenador da Comissão Solidária da Vila, também é voluntário da Barca Literária. Ele compartilhou um pouco da sua história e lembrou que a iniciativa surgiu a partir da entrega de livros junto com cestas básicas durante a pandemia.

“A Vila da Barca é minha origem. Sou fruto de projeto social. Aprendi música no Curro Velho. Hoje, vivo da arte, dou aula, toco em várias bandas, mas nunca saí daqui”, comentou com orgulho.

O músico Pawer Martins é voluntário no projeto Barca Literária (Sandro Barbosa/CENARIUM)

Durante a crise sanitária, o grupo chegou a distribuir mais de sete toneladas de alimentos. Os livros, incluídos nas cestas básicas, inspiraram a criação do projeto cultural. A Barca Literária é mantida por voluntários e já impacta dezenas de jovens da comunidade. “Nosso sonho é fazer da Barca Literária uma referência em leitura em Belém. E está acontecendo. Crianças que tinham dificuldade agora leem, pensam, sonham. Queremos que eles ocupem os espaços que nos foram negados”, afirma.

Livros doados para o projeto Barca Literária (Sandro Barbosa/Cenarium)

Socorro Contente, de 62 anos, fundadora da Associação de Moradores da Vila da Barca, relembra que a comunidade se organizou na década de 1980 para conquistar água e energia. “Fomos criando os grupos, lutando. Mas até hoje, muita coisa não mudou. O posto de saúde às vezes está fechado, falta remédio, tem casa sem água. O poder público vem aqui só em época de eleição”, declara.

A moradora Socorro Contente, de 62 anos, é fundadora da Associação de Moradores da Vila da Barca (Sandro Barbosa/CENARIUM)

Ela diz que a união da comunidade sempre foi essencial e destaca a importância da organização popular na atualidade. “Começamos a lutar quando não tínhamos água, nem energia. Fundamos a associação em 1986. Hoje há mais grupos, mas ainda falta muita coisa: saúde, água e presença do poder público. Tem muita gente se dedicando, mas a comunidade ainda está dividida. Uns se mobilizam, outros esperam. Mas a mudança vem da gente. Se não for assim, vamos continuar sendo esquecidos”, desabafa.

O que diz o Estado?

A CENARIUM solicitou posicionamento do Governo do Pará sobre as declarações dos moradores da Vila da Barca. Leia abaixo, na íntegra, a nota enviada à reportagem:

“Não é verdadeira a informação de que a Vila da Barca está excluída dos investimentos vinculados à COP30 ou que receba resíduos de outras regiões da cidade. A comunidade conta com a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE Vila da Barca), que atualmente atende as moradias já conectadas ao sistema público de esgotamento sanitário.

É importante ressaltar que o esgoto da área da Doca não será direcionado para a região. Todo o volume será encaminhado à Estação de Tratamento do Una, em outro ponto da cidade, sem qualquer impacto sobre os moradores. Não há despejo ou tratamento de resíduos externos na comunidade.

Os investimentos estruturados para a COP30 priorizam a melhoria da qualidade de vida da população de Belém e da Região Metropolitana. O Estado executa obras em diversas áreas da capital, com atenção especial às regiões periféricas. Mais de 30 grandes intervenções estão em andamento, com foco em saneamento, mobilidade e infraestrutura urbana. Entre elas, a reconstrução de 13 canais – dos quais 11 situam-se em bairros periféricos – reforça o compromisso com a redução de alagamentos e a promoção da saúde pública.

Na área de saneamento e macrodrenagem, os investimentos já somam R$ 1 bilhão, beneficiando mais de 500 mil pessoas. O orçamento estadual prevê R$ 4,5 bilhões em recursos para obras no biênio 2024 e 2025, com impacto direto sobre cerca de 2 milhões de moradores da Grande Belém. Os valores são provenientes do Tesouro Estadual, BNDES, Caixa Econômica Federal e Itaipu Binacional”.

Leia mais: Favelização desafia Belém em questões históricas e direito à cidade
Editado por Jadson Lima

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