Racismo e xenofobia na UFPA expõem silenciamento de indígenas e negros
Por: Inory Kanamari
18 de novembro de 2025O artigo de hoje visa trazer à tona uma realidade silenciada por muitos: o racismo, o preconceito e a xenofobia institucional, práticas ainda pouco discutidas em nossa sociedade, mas que persistem de maneira violenta dentro das instituições de ensino superior, como é o caso da Universidade Federal do Pará (UFPA). Com mulher indígena, sou testemunha e porta-voz de muitas vítimas que, assim como eu, enfrentam um sistema que não apenas negligência, mas ativa e conscientemente perpetua a exclusão de grupos historicamente marginalizados.
O estado do Pará abriga uma rica diversidade de povos indígenas, com suas culturas e línguas únicas, além de uma população negra que também foi decisivamente moldada pela herança de resistência e luta. Porém, a realidade que se observa é que o Pará, e a UFPA, infelizmente ainda não reconhecem, de fato, essa herança negra e indígena. Não reconhecem o valor e a dignidade dos povos originários, o que gera imensos prejuízos sociais e históricos a essas populações, mantendo-as marginalizadas e com acesso restrito à educação.
Apesar de ser uma instituição pública, com um programa de cotas que se propõe a garantir o ingresso de estudantes negros e indígenas, na prática, essa política não passa de um “papel de fachada“. O processo seletivo para ingresso na UFPA, especialmente no mestrado, evidencia claramente o que é, na verdade, uma estratégia de engano. Embora a universidade ofereça vagas para negros e indígenas, as práticas adotadas pela instituição na seleção desses candidatos são de uma gravidade que beira o abuso institucionalizado.

Os candidatos ao apresentarem documentos que comprovam sua identidade indígena ou negra, os mesmos se veem, por parte da universidade, expostos a uma humilhação pública e a uma pseudoavaliação de sua “autodeclaração” feita por uma banca composta, em sua maioria, por professores brancos e elitizados, que têm a incumbência de decidir quem é indígena ou negro, desconsiderando por completo os documentos apresentados. O mais cruel é a postura desrespeitosa e de violência psicológica adotada durante as seleções, com gritos e humilhações que buscam desqualificar e deslegitimar a identidade racial e indígena dos candidatos. São submetidos a uma verdadeira tortura psicológica, sendo impedidos, inclusive, de gravar qualquer parte do processo.
Ao final, caso os candidatos decidam recorrer da decisão, se veem diante de mais uma injustiça: o recurso é julgado pela própria banca que os desclassificou, o que configura um evidente conflito de interesse. Não há imparcialidade, e sim uma perpetuação de um sistema excludente, que desconsidera a verdadeira identidade dos povos indígenas e negros.
A minha própria experiência, em 2021, no processo seletivo para o mestrado na UFPA, é um exemplo claro dessa violência institucional. Fui reprovada sob o absurdo argumento de que meu Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), emitido pela Funai, seria falso. A antropóloga responsável, sem nenhuma fundamentação sólida, afirmou que o Rani deveria ter sido emitido no momento em que obtive minha certidão de nascimento, ignorando completamente a realidade da emissão de documentos pela Funai, que só pode acontecer quando o indígena viaja até locais com estrutura para emiti-los. E mais, desconsiderou minha história e a luta da minha família pela preservação de nossa cultura. A antropóloga Jane Beltrão, em uma atitude de desrespeito inaceitável, ainda me chamou de mentirosa na frente dos demais membros da banca, negando a existência do povo Kanamari, ignorando a história e a cultura do meu povo, que, apesar de originalmente ser do Rio Juruá, parte dos kanamari migraram para o Vale do Javari.
Essa atitude não foi um caso isolado, como a notícia publicada pelo G1 em 2023 sobre a estudante Clara Costa, que também teve sua autodeclaração como negra contestada pela banca de heteroidentificação, apesar de sua história de vida e identidade racial evidentes. O que está em jogo não é somente a cota, mas a dignidade e o direito à educação superior de indivíduos que, como nós, fomos historicamente marginalizados e oprimidos.
Não podemos mais permitir que a UFPA e outros órgãos públicos continuem a agir de forma conivente com essas práticas racistas e excludentes. A universidade tem a obrigação de promover uma educação inclusiva, que respeite as identidades raciais e culturais de seus alunos, e não um ambiente onde a humilhação e o preconceito prevalecem. A recente nota emitida pela UFPA, que tenta se distanciar das atitudes racistas da professora Jane Beltrão, é insuficiente e revela a inércia da instituição em tomar medidas concretas. Não basta repúdio. A UFPA deve abrir procedimentos administrativos para investigar e punir as atitudes discriminatórias e racistas que ocorrem em seu âmbito.
O mais doloroso em tudo isso é perceber o completo desconhecimento e desprezo pela história e pela luta dos grupos minorizados. Para nós, negros e indígenas, o acesso à educação já é um obstáculo imenso, uma batalha constante. Quando finalmente conseguimos alcançar a tão sonhada oportunidade, nos deparamos com uma instituição que, ao invés de nos apoiar, perpetua o racismo, o preconceito e a xenofobia. Esse tratamento não só gera um sofrimento emocional profundo, mas também causa prejuízos financeiros irreparáveis, pois muitos de nós investimos tempo, recursos e esperanças em um processo seletivo que, em vez de nos acolher, nos deslegitima. O que resulta é uma dor ainda maior: a frustração de não ver justiça, de ver nossos direitos negados e nossa dignidade pisoteada.
Nós, como advogadas, acadêmicas e militantes indígenas e negras, exigimos o fim da conivência da UFPA com essas práticas desumanas. Exigimos que o processo de seleção seja verdadeiramente inclusivo, que as políticas de cotas sejam efetivas, e que os direitos dos povos originários e da população negra sejam respeitados. O que está em jogo é o nosso direito de existir, de ser quem somos, sem sermos humilhados ou deslegitimados. A luta continua, e nós estamos aqui para garantir que as vítimas do racismo e da xenofobia institucional encontrem justiça.