Recorde de desmatamento, Cerrado pode alterar regime de água no País
12 de maio de 2023
Área de cerrado desmatada para plantio de soja no entorno da bacia do rio dos Couros, na Chapada dos Veadeiros (GO) - (Foto: Marcelo Camargo - Agência Brasil)
Da Revista Cenarium*
MANAUS – O Cerrado perdeu 782 km² de vegetação em abril deste ano. No acumulado desde janeiro, o número vai a2.206 km², área aproximada de Palmas, capital do Tocantins, segundo dados divulgados nesta sexta (12) pelo Deter. A alta de desmatamento na savana mais biodiversa do mundo já havia sido apontada nos dados parciais do sistema do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) usado para a fiscalização em tempo real.
Na Amazônia, houve uma queda em relação a abril do ano passado, com 329 km² derrubados na floresta. O número segue como a terceira marca mais baixa de alertas para o mês desde o início da série histórica em 2015.
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o Cerrado sofre com terras públicas sem destinação, têm menos áreas conservadas do que a Amazônia e pode ser afetado por regulações da União Europeia que se concentram na floresta tropical.
Área de Cerrado desmatada para plantio de soja no entorno da bacia do rio dos Couros, na Chapada dos Veadeiros (GO) – Lalo de Almeida – 8.dez.21/Folhapress
Ainda, a interação do Cerrado com a Amazônia tem papel fundamental no regime de chuvas e abastecimento de corpos hídricos do país. As reservas legais no bioma variam entre 20% e 32%, quase inversas às da Amazônia, com 80% protegidos por lei nas propriedades rurais.
Os próximos meses serão um desafio para o combate à derrubada, facilitada pelo tempo seco e pela falta de chuvas —não à toa, estão nesse período os picos da série histórica do Deter, iniciada em 2019 no Cerrado.
O principal alerta do Deter, para especialistas, é o de urgência na região, que deve ser analisada em conjunto com o bioma vizinho. “Há uma ênfase histórica, e justificada, na Amazônia, mas há uma ligação bastante grande entre o que acontece na floresta e no Cerrado”, diz Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
Um deles é regulatório. “O Cerrado só tem 7% de sua área protegida legalmente. Na Amazônia, o conjunto de unidades de conservação, reservas extrativistas e terras indígenas, entre outros, chega a 50%.”
“Ainda, não há destinação para 2,5 milhões de hectares de terras públicas, que vêm sendo griladas numa velocidade bastante grande”, destaca Moutinho.
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, as autuações por desmatamento cresceram 287% de janeiro a abril deste ano, em comparação com o mesmo período do ano passado. O aumento no Cerrado, somado a outros biomas, foi de 169%.
O governo prevê começar em julho a atualização do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado. Seu par para a Amazônia, o chamado PPCDAm está em fase de análise das contribuições recebidas em consulta pública.
Yuri Salmona, diretor-executivo do Instituto Cerrados, chama a atenção para outro fator que impulsiona o desmate do Cerrado: a própria legislação internacional, como a aprovada pelo parlamento europeu, leva a uma migração do desmatamento na região.
“Há outras savanas no mundo que sofrem com isso de blocos como a União Europeia”, explica.
Para Salmona, o ideal seria que o desmatamento no Cerrado não passasse de um teto, e que se pudesse equilibrar a produção agropecuária com a preservação da vegetação.
“Temos mais de 30 milhões de hectares de pastagens subutilizadas, às vezes com uma cabeça de gado por hectare. Para que desmatar se continuamos com manejo ruim e baixa tecnologia?”, diz.
A região de intensa atividade agropecuária conhecida como Matopiba (nome formado pelas siglas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) liderou a expansão do desmatamento no Cerrado em 2022, e já mostra efeitos na produção.
“A retirada do Cerrado, combinada a um efeito de mudança climática global, já causou uma perda de 30% da produtividade da soja, porque o ótimo climático foi deslocado geograficamente”, diz Moutinho.
O ótimo climático é a faixa de temperatura favorável à soja, que varia entre 20°C e 30°C, com a temperatura ideal em torno dos 25°C.
Outro problema é a redução da vazão de rios do Cerrado. Estudo do Instituto Cerrados, em parceria com o Instituto Sociedade, População e Natureza, aponta que 88% de 81 bacias hidrográficas do bioma já tiveram redução de vazão causada pelo desmatamento entre 1985 e 2022.
A projeção indica que o Cerrado pode perder 34% da vazão nas suas bacias nos próximos 28 anos. Em 2050, essa redução deve chegar a 23,6 mil metros cúbicos de água por segundo, o equivalente a oito vezes o volume de água que corre pelo rio Nilo.
O desmatamento, segundo a pesquisa, é o principal fator responsável por essa redução. “Esse modelo de ocupação do Cerrado para commodities agropecuárias, exportação e latifúndio depende da exploração excessiva de recursos, é como se fosse um tiro no pé. A própria agricultura acaba com a agricultura”, diz Salmona.
Ainda, diz o pesquisador, diversos rios que alimentam bacias na Amazônia nascem na região do Cerrado, como o Tocantins e o Xingu. Essa água, junto com a evapotranspiração da floresta, ajuda a formar os rios voadores, corredores de umidade que levarão chuva a outros locais do país. Além disso, o Cerrado guarda 8 das 12 maiores bacias do país.
“Do ponto de vista hidrológico e de outros, é preciso falar no binômio Cerrado-Amazônia. São como pernas de um corpo”, resume.
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
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