Ka tücüna naina. Frase escrita na gramática Kanamari e traduzida para o português significa: Olá, leitor(a).
Ao longo da história, os povos originários foram sistematicamente invisibilizados e silenciados, vivendo às margens de uma sociedade que se apresenta como inclusiva, mas que, na verdade, é hipócrita e cruel. Continuamos a enfrentar ataques constantes e lutamos diariamente pela nossa existência, mesmo sem receber o respeito que nos é devido.
Ao contrário do que se pensa, identificar-se como indígena no Brasil é, sem dúvida, um ato de coragem. Isso não deve ser visto como um privilégio; na realidade, muitas portas se fecham para nós. O estigma que nos acompanha há séculos nos forçou a ocultar nossa identidade, como se ser indígena fosse uma ofensa.É lamentável que, mesmo estando presentes nesta terra antes da chegada de colonizadores como portugueses, holandeses e franceses, muitos brasileiros ainda têm um conhecimento limitado sobre nós. Somos frequentemente tratados como estrangeiros em nosso próprio país e rotulados de “índios”, um termo inadequado, sendo o correto “indígena”. A jornada em busca de respeito e reparação é longa, e é por isso que hoje decido compartilhar um pouco sobre a vida e a história do meu povo Kanamari.
Meu povo Kanamari vive nas aldeias da Calha do Rio Juruá, perto dos municípios de Itamarati, Eirunepé e Carauari, além das comunidades do Rio Javari e da cidade de Atalaia do Norte. Nós, Kanamaris – também conhecidos como Tücüna, que significa “gente” – nos orgulhamos de nossa língua materna e de nossa cultura ancestral. No entanto, somos marcados pela dor de uma história de perseguições e opressões.
Desde a chegada dos colonizadores, ouvimos relatos horríveis sobre crimes e violências contra nosso povo. Apesar da bravura que nos permitiu resistir aos ataques, muitos de nossos clãs desapareceram, vítimas de guerras, doenças como malária e diarreia, e do incompreensível abismo linguístico que nos separava de outros povos. Essa história de sofrimento ainda não está no passado; continuamos a enfrentar um desaparecimento forçado de nossa cultura, de nossos parentes, de nossa própria identidade.
Minha luta é um grito de socorro contra a omissão do Estado diante das violências que sofremos diariamente. E assim, relembrando memorias dolorosas e ao mesmo tempo inspirada por uma das belas canções da cantora NegraLi, escrevi o poema “Grito Kanamari”, publicado em 2023 no livro Delineando o Direito: A Visão Jurídica Sob o Olhar das Mulheres, organizado pela Desembargadora Kátia Junqueira. O poema também foi publicado em sites como: línguas minorizadas e em breve também será publicado na Revista Lüvo. Nesse poema, busco expressar a dor e a resistência do meu povo, que segue enfrentando preconceitos diariamente. Se fôssemos reconhecidos por nossos verdadeiros nomes, talvez a opressão não fosse tão pesada.
É angustiante perceber que, apesar de nossas lutas, nossa cultura e identidade estão constantemente ameaçadas. Se as pessoas nos vissem como humanos antes de enxergarem nossos traços indígenas, talvez não tivéssemos que lutar tanto pelo direito de existir. Essa luta é um grito contra a invisibilidade e o silenciamento que nos cercam.
A violência contra nós, que começou com a colonização, ainda persiste. As mulheres Kanamaris, clamando por proteção, muitas vezes são deixadas sozinhas em sua dor. Nossas crianças, que foram raptadas, e nossas ancestrais, que sofreram, merecem ser lembradas e respeitadas. Elas, como minha avó, que não viu seu filho crescer e enfrentou violências inimagináveis, se tornaram exemplos de força e resistência. Minha avó, cujo nome também é Inory, sobreviveu a tudo isso e se recusou a deixar nossa língua e cultura serem esquecidas.
Ela me ensinou desde cedo que não somos o problema da sociedade, e que eles precisam respeitar quem somos. Hoje, contínuo essa luta, buscando reconhecimento e justiça, carregando a memória de todas as mulheres indígenas que vieram antes de mim. Nos próximos parágrafos, você irá conhecer a verdadeira história do meu povo Kanamari através do poema “Grito Kanamari”. Este poema foi criado para fazer ecoar as vozes das mulheres kanamaris e garantir que a sociedade nunca esqueça das barbaridades enfrentadas pelos povos indígenas. Aqui, suas narrativas e lutas serão reveladas de forma a honrar nossas memória e resistência.
Poema: Grito Kanamari
Ah se pelo menos eu pudesse ter sido registrada com o meu verdadeiro nome Inory e sobrenome Kanamari.
Meu país, minha terra, meu povo indígena Kanamari, ah se eu soubesse que nada adiantaria que o preconceito ainda persistiria e que por causa dele meu povo ainda muito pereceria, ah se eu soubesse que minha cultura e especificidades indígenas seriam vistos de formas diferentes.
Se seu olhar homem branco fosse mais inocente. Se eu não tivesse que ser forte a todo o momento Nem dependesse da sorte para lutar pelo meu povo
Se antes do espírito mau que me pintam por ser o que sou, mulher indígena Kanamari ou dos espíritos da floresta que me guiam e que cultivo dentro de mim, pelo mesmo motivo.
Meus parentes e eu fossemos apenas PESSOAS, pessoas antes de indígenas, se não tivéssemos que lutar pelo simples direito de continuarmos existindo.
Se eu não tivesse que gritar a cada tentativa de me silenciarem, invisibilizarem e violarem. Ainda iria ter graça querer me eliminar HOMEM BRANCO, por estar onde estou? E se nós povos indígenas quiséssemos nos vingar? Ou vocês (homens brancos) pensam que nós não lembramos dos estupros de nossas parentes indígenas, que iniciou em 1.500 pelos portugueses, holandeses e franceses e seguem sendo violadas por madeireiros, pescadores e garimpeiros.
E vocês, ainda comemoram a ação, porque o resultado dessa violência contra nosso povo foi a miscigenação, e vocês ainda acham que nós esquecemos das violações cometidas pelos NÃO indígenas contra nós povos originários?
Sobre as mulheres indígenas que tiveram seus corpos violados, elas estavam sozinhas clamando aos espíritos da floresta proteção.
Sim, como se não bastasse, raptaram das aldeias as crianças indígenas. A pergunta que se faz AGORA é se ESSAS crianças estão vivas ou mortas? E elas as mulheres indígenas que tiveram seus corpos violados?
Entre elas minha bisavó e avó, não viram seus filhos crescerem, foram sentenciadas após serem reiteradamente violadas. Sem ajuda, sozinhas, minha bisavó e avó assim como outras mulheres indígenas sofreram pela falta de seus filhos, e por mais que elas suplicassem aos NÃO INDÍGENAS que trouxessem seus filhos de volta, eles não os trouxeram.
E elas, essas mulheres indígenas, viveram um verdadeiro inferno de um julgamento eterno. Se nós os indígenas NÃO morremos por omissões, violações, assassinatos, perseguições, morremos em decorrência das invasões.
Quando somos lembrados somos taxados como sem modos e preguiçosos na televisão. Mas ninguém lembra a invisibilidade e silenciamento histórico que sofrem há gerações, somos indígenas, com diploma e sem oportunidade de inclusão.
Você sabe o que é preconceito homem branco? Eu sim. Será que nós pessoas indígenas um dia teremos paz? Ou viveremos sempre um caos?
O preconceito NÃO me parou, e suas mãos sujas de sangue inocente do meu povo, jamais serão limpas.
Meus parentes estão mortos na matéria, mas vivos em nossa memória, assim como nossas línguas que sobrevivem em nossos territórios.
Venho aqui para lembrar que temos uma história, que somos histórias. Em meio ao caos vamos encontrando a glória;
Em meio a tantas lutas vamos chegando à vitória; É que temos nossa ancestralidade e força para continuarmos VIVOS
Eu me basto e não tento me encaixar em seu espaço branco e elitizado.
Pra chegar até aqui, precisa ser muito macho, e você homem branco elitizado, se acha macho? Mas nunca viu rastro de ANTA TÃO POUCO escutou esturro de onça, se correr a onça te pega homem branco, e se ficar a cobra te come.
O que eu passei na vida homem branco, você não sabe como é, para viver na minha pele indígena, tem que ser muito, mas muito mulher.
Bapo ikoni. Até a próxima pauta.
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(*) Inory Kanamari é articulista da Cenarium e a primeira advogada indígena do povo Kanamari. Está como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM, vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena Nheengatu no Conselho Nacional de Justiça, ativista, poetisa, membra na Academia de Letras, Ciência e Cultura da Amazônia (Alcama).
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