Ribeirinhos da Amazônia têm perdas neurológicas em virtude do consumo de peixes contaminados por mercúrio, aponta estudo

Pesquisadores coletam amostras da população ribeirinha, já contaminada por mercúrio, nos rios da Amazônia. (Expedição Puruzinho/Divulgação)

Luciana Bezerra – Da revista Cenarium

MANAUS – As comunidades ribeirinhas e indígenas que habitam a Amazônia brasileira são as mais expostas ao mercúrio encontrado em rios e lagos da Bacia Amazônica. Estudo inédito da neurocientista brasileira e professora convidada da Casa do Saber, Claudia Feitosa-Santana, aponta que mesmo morando em áreas não afetadas por hidrelétricas, extração de ouro, desmatamento ou sem nenhum contato direto com potenciais fontes de contaminação por mercúrio, ribeirinhos apresentam um prejuízo na percepção das cores, sobretudo em tons pastéis, um possível indicativo de alterações no sistema nervoso.

O estudo foi realizado durante a expedição Puruzinho – projeto mantido pela Fundação Universidade Federal de Rondônia (Unir) – e, publicado na revista científica NeuroToxicology, em 2018.

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Na ocasião, foram analisados cerca de 78 moradores do sexo feminino e masculino, com idade entre 18 a 64 anos, da comunidade Lago do Puruzinho, localizada no rio Madeira, em Humaitá (a 696 quilômetros de Manaus).

Segundo a neurocientista e responsável pela pesquisa, Claudia Feitosa-Santana, as amostras de fios de cabelo dos participantes foram examinadas em equipamento específico de laboratório para medir o nível de mercúrio no organismo, além da realização de dois testes de visão para avaliar a percepção das cores da população.

Os testes de cores utilizados na pesquisa foram Farnsworth-Munsell (FM100), teste altamente eficaz para avaliar a capacidade do indivíduo de discernir as cores, o mesmo usado por exemplo, para identificar casos de daltonismo e o D15d, responsável por avaliar rapidamente a distinção de cor, ambos conhecidos pela confiabilidade de resultados.   

Em paralelo, a linha de pesquisa contou com um grupo controle formado por 194 indivíduos saudáveis, de 17 a 54 anos, das cidades de São Paulo e Belém, que consumiam peixe em sua dieta alimentar no máximo duas vezes por semana. E, de acordo com os resultados obtidos entre os testes realizados na comunidade ribeirinha da região central da Amazônia e do grupo controle de São Paulo e Belém, surpreenderam os pesquisadores.

Segundo a neurocientista, os ribeirinhos do Lago do Puruzinho apresentaram mais erros no desempenho da percepção das cores do que os participantes do grupo controle dos centros urbanos. Assim como, possíveis distúrbios neurológicos.

“Os testes revelam perdas neurológicas subclínicas, que não afetam o dia-a-dia dos indivíduos, porém, essas pessoas podem ter maior dificuldade em diferenciar tons mais pastéis e futuramente apresentar algum outro distúrbio neurológico. O mercúrio, mesmo em pequenas doses, provavelmente prejudicou a retina ou cérebro dos ribeirinhos. Se eles fossem submetidos a outros testes, de raciocínio, motor ou de linguagem, talvez apresentem outras alterações”, enfatiza Claudia. 

O estudo destacou também que a concentração do metal geralmente é alta em peixes de lugares onde há barragens e garimpo, não é o caso da área pesquisada, o que chamou ainda mais a atenção dos pesquisadores. Quanto maior a presença de pescado na alimentação da população, fator comum na região Amazônica, mais alta é a taxa de mercúrio por gramas de cabelo apresentadas num indivíduo.

No entanto, pondera a neurocientista, a quantidade de mercúrio presente no organismo dos participantes é considerada segura, ou seja, abaixo de 50 partículas por milhão (ppm) de mercúrio no cabelo tolerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para quem está em contato direto com a fonte de contaminação, diferentemente da população estudada. Além disso, os danos causados à visão da cor devido ao consumo de peixes contaminados com metilmercúrio podem ser irreversíveis.   

“A percepção das cores da população nesta região da Amazônia está comprometida, embora as concentrações de mercúrio tenham sido todas dentro da faixa tolerada (menos de 41ppm). É um problema crónico, silencioso e os danos são provavelmente irreversíveis, e seria imprudente de nossa parte, deixar um assunto tão relevante deste, de lado. Não podemos afirmar nossas descobertas como uma associação causal. Mas, serve como alerta para pressionar os governos a implementar políticas públicas de saúde que garantam um ambiente mais seguro para a população amazônica”.

Para o coordenador do Projeto Puruzinho e professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Wanderley Bastos, que estuda a região há 20 anos, os dados sobre os níveis de metilmercúrio encontrados entre a população ribeirinha do Lago do Puruzinho são relevantes, principalmente entre os habitantes mais velhos, ou seja, da faixa etária pesquisada pela neurocientista. Segundo Bastos, a concentração de mercúrio nesses moradores é superior a recomendada pela OMS (7ppm), para aqueles que não tem contato direto com a fonte contaminadora. Apesar de hoje, o perfil entre a população jovem ser diferente.

“Notamos uma sensível redução nas concentrações de mercúrio nessa comunidade, embora, isso venha ocorrendo apenas para a faixa etária mais baixa (de 0 a 25 anos). Isso se dá pela mudança de hábito no consumo de peixes, que vem reduzindo ou pelo menos diminuindo com o consumo de outras fontes de proteínas animal (frango e salsicha). Entretanto, entre habitantes na maior faixa etária, as concentrações de mercúrio por fios de cabelos são superiores as recomendadas pela OMS, o que não deveria existir, já que essa população vive em uma área onde não há potenciais fontes de contaminação por mercúrio”, alerta o professor.  

Problema antigo e mudanças

A exposição a mercúrio na região Amazônica tem sido uma preocupação importante desde a década de 80, quando as atividades de mineração de ouro contaminaram muitas bacias hidrográficas e seus peixes. A exposição ao mercúrio em humanos pode levar a mudanças na função neural. O sistema visual tem sido usado como um indicador funcional de toxidade de metilmercúrio (orgânico) e vapor de mercúrio (inorgânico).

As crianças são particularmente vulneráveis a essa exposição ao metal é o que aponta o professor associado da Universidade Federal do Pará, que pesquisa há duas décadas, as comunidades do rio Tapajós e do rio Tocantins, Givago da Silva Souza.

Segundo ele, desde 2000 acompanha a exposição de mercúrio nas crianças das comunidades Barreiras e São Luiz do Tapajós, localizadas no município de Itaituba, no Pará. Área, onde a concentração de mercúrio é extensa em virtude das barragens e da extração de garimpo.

A primeira amostra contou com um grupo de 176 crianças, com idades entre 7 a 14 anos, dessas comunidades. Apesar do diagnóstico, na época, apontar altas taxas de contaminação de mercúrio entre as populações analisadas, entre 10 a 30ppm, as crianças, durante toda a vida, nunca tiveram contato com o vapor de mercúrio. O que levou os pesquisadores a concluir que a maior parte do mercúrio em seus corpos foi obtida pelo consumo de peixe, pelo fato de serem comunidades isoladas e com difícil acesso a áreas urbanas.

Givago destaca ainda que apesar das amostras apontarem alterações nos testes efetuados, essas populações não são doentes e vivem uma vida normal, do ponto de vista de um leigo no assunto.

Segundo ele, foi identificado apenas alterações subclínicas, as mesmas encontradas nas amostras analisadas pela neurocientista, na população adulta da comunidade do rio Madeira. No entanto, vale lembrar que o mercúrio, tanto do rio Madeira, quanto do rio Tapajós, é de média dosagem de exposição e, essas populações estão expostas ao mercúrio a partir de muito cedo, ou seja, desde que nasceram e consomem peixes, acumulando o metal no organismo.

Atualmente o cenário dessas comunidades é outro e os índices de exposição ao mercúrio caiu significativamente com relação as amostras anteriores. “Hoje, os níveis de mercúrio encontrados nas amostras das crianças é em torno de 7ppm, bem diferente dos apresentados no passado. Contudo, ainda é alto, se considerado a um indivíduo saudável. Sem dúvida, é uma questão de saúde pública e não sabemos qual será o impacto causado por essa contaminação no desenvolvimento motor e cognitivo dessas crianças. Vamos continuar acompanhando essa população para ver se eles não apresentam nenhum dano no cérebro futuramente”, enfatiza o professor.

Outro ponto considerável, de acordo com Givago, é de que as amostras analisadas pela neurocientista, no rio Madeira, foram coletadas em adultos e não em crianças. Portanto, como o mercúrio é acumulativo, enquanto mais velho é o indivíduo, maior o índice de contaminação do metal no organismo, pelo fato dele consumir o alimento por mais tempo.   

As pessoas começaram a ficar mais atentas ao rio Tapajós na década de 80/90, onde surgiram os primeiros estudos sobre exposição de mercúrio na região. De lá pra cá, muita coisa mudou. Os grupos de pesquisas têm realizado políticas educacionais para conscientizar a população das comunidades sobre quais grupos de peixes devem ser consumidos. Além, da introdução de outras dietas proteicas na alimentação. E a população tem seguido esses conselhos. Outro fator importante é que essas comunidades têm deixado de ser tão isoladas como eram no passado, conclui Givago.

Mudanças também são visíveis na comunidade do Lago do Puruzinho, onde atualmente vivem cerca de 150 habitantes, divididos entre 32 famílias.

De acordo com Wanderley Bastos, inicialmente os trabalhos eram voltados para a qualidade da água e para avaliar a saúde humana da comunidade com relação a exposição de mercúrio. Através do projeto Ensino de Ecologia no Pátio da Escola (EEPE), implantando na comunidade, a vida dessa população tem mudado.

“Por meio do projeto EEPE, as crianças da comunidade têm motivado seus pais a aderirem a ações educacionais, cuidando mais da saúde e da alimentação de suas famílias. Moradores mais antigos também sentiram as transformações desde a chegada dos pesquisadores na região”.

Riscos generalizados

É importante ressaltar que até hoje nenhuma população da Amazônia foi diagnosticada com a síndrome de Minamata. No Japão, a exposição foi a um grau muito maior de mercúrio, cerca de 10 vezes mais do que a encontrada na região Amazônica, por exemplo.

Em ordem de grandeza pode-se dizer que quem vive na cidade tem 10 vezes menos mercúrio no organismo do que quem vive nas adjacências do rio Tapajós ou do rio Madeira. “A nossa preocupação é de que essas populações da Amazônia estão expostas a esse metal há muito tempo, ou seja, a vida inteira. Esse tipo de exposição é completamente diferente da apresentada em Minamata. Portanto, não dá para esperar que aconteça a mesma coisa no Brasil. Mas, também não sabemos o que está por vir”, finaliza Givago.

Após anos estudando a contaminação de vapor de mercúrio nas indústrias, tema de seu Mestrado (USP), Claudia Feitosa-Santana resolveu ampliar sua linha de pesquisa sobre o mercúrio em outras fontes de contaminação e, segundo ela, escolheu a Amazônia Brasileira como campo de estudo, já que a contaminação de mercúrio na região vem sendo estudada por pesquisadores nacionais e internacionais há mais de 30 anos.

A neurocientista alerta que o mercúrio é um problema sério, mesmo que, até hoje, as pesquisas realizadas na Amazônia não tenham identificado nenhum caso de contaminação de mercúrio em altos níveis como os ocorridos na cidade de Minamata, no Japão, na década de 50, que matou mais de 700 pessoas. Todavia, acredita que os órgãos do governo deveriam criar políticas públicas de saúde para garantir que o mesmo cenário não aconteça a população ribeirinha da Amazônia.

Wanderley Bastos também salienta a importância de estabelecer um plano de monitoramento ambiental e um mapeamento de riscos para identificar possíveis fontes de exposição ao mercúrio. Além, de adotar medidas preventivas mapeando as áreas mais isoladas e investir cientificamente. O Brasil é signatário da Convenção de Minamata desde 2013, assumindo a extinção nos diversos usos de mercúrio até 2020. Cujo objetivo é proteger a saúde humana e o meio ambiente das emissões antropogênicas e das liberações de mercúrio.  

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