Rir de quem? Humor, violência e o papel da ‘piada’ na exclusão e vulnerabilização
Por: Lucas Ferrante
23 de novembro de 2025O que dizem as ciências sociais, a neurociência e a psicologia sobre os impactos do “humor” preconceituoso na legitimação da violência e na desumanização de grupos oprimidos.
A recente condenação do comediante Léo Lins reacendeu o debate sobre os limites da liberdade de expressão, particularmente no campo do humor. A controvérsia se intensifica quando piadas envolvem temas sensíveis como abuso infantil, misoginia ou racismo. A noção de que “piada é só piada” tem sido usada como escudo para justificar conteúdos discriminatórios. No entanto, embora alguns humoristas aleguem que seu trabalho se restringe à encenação e que a intenção não é ofender, evidências científicas robustas demonstram que o humor preconceituoso pode ter efeitos sociais reais e profundamente danosos.
Pesquisas conduzidas por psicólogos sociais há mais de duas décadas demonstram que piadas machistas não apenas refletem ideias discriminatórias — elas também contribuem para sua manutenção e reforço. Em um dos estudos, publicado no periódico científico Personality and Social Psychology Bulletin, homens e mulheres foram expostos a três tipos de conteúdo: (1) piadas sexistas, (2) comentários machistas não humorísticos e (3) piadas neutras. Posteriormente, os participantes avaliaram uma situação em que um supervisor tratava uma funcionária de forma evidentemente discriminatória. Aqueles expostos às piadas machistas consideraram a situação menos grave e menos digna de reprovação.
Em uma segunda pesquisa, publicada no periódico Journal of Experimental Social Psychology, homens universitários submetidos à mesma exposição foram convidados a alocar verbas a organizações estudantis, incluindo grupos de apoio a mulheres, judeus e negros. Os participantes que ouviram piadas sexistas destinaram significativamente menos recursos às organizações femininas. Esses achados sugerem que o humor preconceituoso diminui a empatia e aumenta a tolerância a formas sutis, mas consistentes, de exclusão social. Notavelmente, os efeitos foram mais intensos entre aqueles que já expressavam atitudes machistas previamente, indicando que esse tipo de humor atua como um catalisador para vieses já existentes.
Essas observações ganham ainda mais relevância quando o conteúdo humorístico abarca temas extremamente sensíveis, como a pedofilia — caso do material de Léo Lins. A normalização dessas narrativas, mesmo em tom jocoso, pode contribuir para a insensibilização diante de práticas abusivas e violentas. O impacto das mensagens humorísticas ou satíricas no reforço de discursos de ódio também é evidenciado em contextos históricos trágicos. Um dos exemplos mais emblemáticos é o papel das rádios durante o genocídio de Ruanda em 1994. A Rádio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM), dominada por extremistas Hutus, desempenhou um papel central na disseminação de ódio contra a minoria Tutsi. Ao longo de meses, a programação intercalava músicas, notícias e sketches humorísticos com incitação ao extermínio. A linguagem desumanizante — como chamar os Tutsis de “baratas” — foi transmitida com tom jocoso e repetitivo, criando uma atmosfera onde o assassinato em massa se tornava moralmente aceitável para parte da população. Enquanto isso, o governo organizava e armava milícias nas ruas, conhecidas por atacar em grupo e aterrorizar a população Tutsi. Essas milícias atuavam de forma coordenada com os discursos propagados pelas rádios, intensificando o clima de medo e legitimação da violência. O humor, a desinformação e os chamados explícitos ao ódio serviram como combustível para que civis comuns se engajassem nos massacres, revelando como a retórica desumanizante pode rapidamente se converter em ação coletiva.
O “humor”, nesse caso, não apenas banalizou o discurso de ódio, mas o tornou palatável e até mesmo divertido, reduzindo barreiras morais e facilitando a adesão de civis ao genocídio. Estima-se que aproximadamente 800 mil pessoas foram mortas em apenas cem dias. A atuação dos “humoristas” e das rádios no estímulo à violência foi tão evidente que seus diretores foram posteriormente condenados por incitação ao genocídio no Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Esse caso ilustra de forma extrema como o preconceito, transfigurado em “humor” e veiculado pela mídia sob o disfarce do entretenimento, pode funcionar como uma arma de destruição social, violação de direitos e vulnerabilização de indivíduos.
Nos tempos atuais, marcados pela disseminação irrestrita de conteúdo em redes sociais desprovidas de regulamentação eficaz, os algoritmos desempenham um papel central na amplificação de discursos polarizadores e na consolidação de padrões de pensamento. Esses sistemas de recomendação priorizam conteúdos com alto potencial de engajamento — frequentemente baseados em sensacionalismo, preconceito ou humor discriminatório — criando câmaras de eco que reforçam vieses cognitivos preexistentes. Estudos em psicologia social e neurociência têm demonstrado que a exposição repetida a mensagens desumanizantes, mesmo quando disfarçadas de piadas, contribui para a dessensibilização emocional diante do sofrimento alheio, além de reduzir os limiares de aceitação moral da violência simbólica ou real. Assim, a lógica algorítmica das plataformas digitais não apenas molda comportamentos sociais, mas também acelera a naturalização de estereótipos e a banalização do ódio — fenômeno que exige atenção urgente de pesquisadores, formuladores de políticas públicas e da sociedade civil.
Outros estudos corroboram a ideia de que o humor preconceituoso molda atitudes. O artigo “Uma piada é só uma piada… exceto quando não é” (“A joke is just a joke… except when it isn’t”) publicado no periódico científico Studies in Communication Sciencespela pesquisadora Veronika Schoeb, demonstrou que indivíduos que enxergam esse tipo de piada como inofensiva tendem a tolerar mais facilmente comportamentos discriminatórios. Participantes que riram ou aceitaram piadas preconceituosas mostraram maior aceitação de situações reais de exclusão logo em seguida.
As neurociências também oferecem contribuições importantes. Pesquisas lideradas por Susan Fiske, referência em psicologia social, demonstram que a exposição repetida a representações degradantes de grupos vulneráveis pode reconfigurar circuitos neurais relacionados à empatia. Em estudos com ressonância magnética funcional, participantes expostos a imagens de pessoas em situação de rua, dependentes químicos e pessoas com deficiência ativaram regiões cerebrais associadas à repulsa — não à compaixão. Isso indica que a desumanização pode ocorrer de forma automática, especialmente quando esses grupos são frequentemente retratados de forma estigmatizada.
Mesmo no contexto brasileiro, estudos científicos já apontam essa tendência. Um exemplo é o estudo publicado no periódico Environmental Conservation, editado pela Universidade de Cambridge e coordenado por mim, com coautoria do pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e laureado com o Prêmio Nobel da Paz, Philip M. Fearnside. Neste trabalho, demonstramos que, após as eleições de 2018, grileiros de terras, encorajados por discursos de ódio direcionados contra povos indígenas, invadiram o território do povo Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e chegaram a ameaçar decapitar todas as crianças caso os indígenas tentassem retornar às suas terras. O caso ilustra de forma contundente como discursos discriminatórios têm o poder de desencadear processos de dessensibilização social e legitimar ações extremas de violência contra populações vulneráveis também no Brasil.
Esses achados dialogam diretamente com o conceito de viés inconsciente. Quando o cérebro é repetidamente exposto a estereótipos — ainda que em tom de piada — essas associações são internalizadas e podem influenciar decisões cotidianas. O cerne da questão não é sobre limitar o humor ou cercear a liberdade de expressão de indivíduos em geral, mas sim sobre a proteção de populações historicamente oprimidas, que continuam sendo alvo de violências simbólicas e materiais. Quando piadas reforçam estereótipos racistas, misóginos ou capacitistas, elas não atuam isoladamente — fazem parte de um ecossistema discursivo mais amplo que legitima e naturaliza a marginalização desses grupos.
Um exemplo recente dessa retórica de deslegitimação também ocorreu durante audiência no Senado, em maio deste ano, quando os senadores Plínio Valério (PSDB-AM) e Marcos Rogério (PL-RO) atacaram a ministra Marina Silva com declarações misóginas. Valério afirmou que “a mulher merece respeito; a ministra, não” e sugeriu que ela fosse “enforcada em praça pública”. Rogério, por sua vez, disse que Marina deveria “se pôr no seu lugar”. Mais do que agressões pessoais, essas falas funcionam como sinalizações públicas voltadas a inflar a base eleitoral desses parlamentares contra uma mulher negra em posição de liderança. Ao substituir o debate técnico por retórica violenta, esses discursos não apenas silenciam o contraditório, mas também reforçam estruturas simbólicas de exclusão. A narrativa de que estaríamos vivendo uma “ditadura do politicamente correto” ou que a liberdade de expressão estaria sob ameaça irreversível tem sido mobilizada como instrumento ideológico para enfraquecer avanços em direitos sociais e deslegitimar denúncias de discriminação. Trata-se de uma estratégia deliberada para deslocar o foco do conteúdo da mensagem para a suposta “censura” de quem a profere, invertendo a lógica da opressão.
Quando um político de alta visibilidade afirma publicamente que “pintou um clima” com uma menor de idade, declara que “nem mais um centímetro” será destinado à demarcação de terras indígenas, ou quando um assessor internacional da Presidência da República ostenta símbolos nazistas em eventos oficiais, isso não pode ser reduzido a uma força de expressão ou descuido — trata-se de retórica estruturada, que comunica, de forma direta ou codificada, respaldo político e simbólico para a exclusão, a violência e a impunidade. Essas falas funcionam como sinalizações claras a parcelas da sociedade que já se sentem autorizadas a agir com hostilidade contra minorias ou grupos vulneráveis. Ao serem proferidas por autoridades públicas ou figuras midiáticas, essas mensagens ganham legitimidade institucional, esvaziam a eficácia de políticas de proteção e reforçam uma cultura de desresponsabilização. Portanto, o uso do humor ou da liberdade de expressão como escudo para agredir grupos vulneráveis não é um gesto neutro — é parte de uma engrenagem ideológica que perpetua estruturas de dominação e compromete os fundamentos de uma democracia plural e inclusiva.
Portanto, o debate sobre o humor não pode ser reduzido à dicotomia entre censura e liberdade de expressão. A verdadeira questão é: que tipo de sociedade queremos construir? Uma que reforce preconceitos históricos sob o pretexto do riso, ou uma que reconheça o poder simbólico do humor e sua responsabilidade social? A ciência é clara: piadas discriminatórias não são inofensivas — elas moldam comportamentos, decisões e estruturas sociais. Se o humor é uma ferramenta cultural potente, também deve estar à altura da responsabilidade que isso implica.