Riscos no Vale do Javari foram alertados por Bruno Pereira em reportagem de 2017

Bruno Pereira (Reprodução)
Com informações do Estadão

MANAUS – Em abril de 2017, a reportagem especial “Cerco aos Isolados”, publicada no Estadão, já denunciava a situação de abandono e violência no Vale do Javari, onde o indigenista Bruno Pereira e jornalista inglês Dom Philips foram assassinados. Na versão impressa, o título “Vidas em risco no Vale do Javari” alertava sobre os perigos que os indígenas isolados corriam com as atividades ilegais de caça, pesca, garimpo e desmatamento na região.

“O que assistimos hoje, infelizmente, é o esfacelamento da política de isolados. Podemos ter um novo momento de genocídio desses povos. Vemos equipes de caça, garimpeiros e madeireiros se aproximando da terra indígena. Os índios têm imunidade muito baixa. Qualquer vírus pode dizimar grupos inteiros”, disse Bruno Pereira na reportagem.

Reportagem que teve o indigenista Bruno Pereira como guia no Estadão de 30/4/2017.  

Ao lado de Bruno Pereira e Maxciel Pereira, assassinado em 2019, do também indigenista Gutemberg Castilho e dos indígenas Cleber Kanamari, Dashe Maioruna, Ramon Maioruna, Daniel Maioruna e André Marubo, o repórter André Borges e o repórter fotográfico Werther Santana participaram de uma expedição na região.

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O indigenista aparece em várias imagens feitas pela reportagem de 2017. A maior parte delas inéditas, arquivadas no Acervo Estadão, são agora publicadas numa nova galeria de imagens.

BRUNO PEREIRA NO VALE DO JAVARI EM FOTOS INÉDITAS

Indigenista Bruno Pereira, assassinado no Vale do Javari, conduziu expedição na região acompanhada pela reportagem do Estadão, em 2017. 

A apuração para a reportagem publicada em 2017 se baseou em três meses de levantamento prévio de dados, com acesso a informações de órgãos federais, organizações socioambientais, antropólogos e especialistas em conflitos indígenas. Paralelamente, foram realizadas negociações diretas com lideranças da região do Vale do Javari e da própria Univaja, para que a reportagem obtivesse autorização para percorrer toda a área.

O objetivo era revelar a vulnerabilidade desses povos isolados, mas sem contatá-los, em respeito aos seus modos de vida. Com autorização de lideranças indígenas da região, a equipe percorreu centenas de quilômetros de rios e trilhas pelo Javari, por nove dias. O trabalho registrou a invasão de madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores em terras protegidas por lei.

O material revelou as condições precárias a que os indigenistas são submetidos. Bases de apoio têm problemas de comunicação, falta de estrutura básica e estão caindo aos pedaços no Vale do Javari. Os funcionários que encaram o crime nesses extremos da Amazônia ficam, por vezes, sem nenhuma comunicação, em uma área de 84.570 quilômetros quadrados, equivalente a dois Estados do Rio.

Precariedade de base da Funai no Vale do Javari. 
Precariedade de base da Funai no Vale do Javari. 

Na Base da Funai no Rio Quixito, funcionários permaneciam até meses isolados no posto de fiscalização e não contavam sequer com embarcação disponível em tempo integral. Nada de internet ou celular. A comunicação depende de um pequeno aparelho de rádio.

No fim da expedição, que foi batizada de “Quixito-Curuçá”, a reportagem deixou a floresta e voltou de barco até Atalaia do Norte, guiada por Maxciel Pereira, parceiro de Bruno Pereira nas expedições do Javari. Bruno Pereira e os demais seguiram adiante na mata, para realizar uma segunda etapa do trabalho.

A reportagem “Cerco aos Isolados” recebeu, em outubro de 2017, uma menção honrosa no 39º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog, principal premiação do País voltado a temas relacionados aos Direitos Humanos.

Leia depoimento do repórter André Borges sobre Bruno Pereira e a expedição:

O indigenista Bruno Pereira durante expedição no Vale do Javari em 2/12/2016
O indigenista Bruno Pereira durante expedição no Vale do Javari em 2/12/2016

Bruno Pereira, o guerreiro isolado por Brasília

Num domingo de sol, Bruno Pereira empurrava um carrinho de bebê sobre a calçada de concreto claro que circula o Parque Olhos d’Água. Lugar nobre de Brasília, um refúgio de mata e de pássaros que restou preservado, no fim da Asa Norte. Era 2019.

Eu seguia pela mesma calçada em sentido oposto. Quando vi o Bruno se aproximar, não o reconheci imediatamente. O corpo grande e branco se inclinava para segurar as alças do carrinho a sua frente, onde levava o filho recém-nascido. Usava chinelos, camiseta e bermuda. Estava feliz.

Nos cumprimentamos com carinho e olhar confidente, como se trocássemos uma senha de acesso a uma amizade nascida três anos antes. E demos um abraço. Fiz uma piada qualquer, perguntando que raios ele estava fazendo no meio dessa cidade.

Era engraçado ver Bruno naquela situação, ao lado de prédios envidraçados, num típico passeio urbano. Nosso ponto de partida havia sido o Vale do Javari, uma expedição que pretendia identificar pontos de presença e invasão da terra indígena dos isolados.

Naqueles dias, seguimos de barco para dentro da floresta, fizemos trilhas por charcos, montamos acampamentos, cozinhamos. E conversamos muito. O Bruno tomava notas em um caderno, fazia marcações, liderava a expedição. Tinha o mapa do Javari em sua cabeça, conhecia cada igarapé, cada curva sinuosa do Quixito, do Ituí, do labirinto líquido que parece manter a gente sempre no mesmo lugar depois de horas de barco rio adentro. No caminho, cruzamos com caçadores e pescadores ilegais, que foram abordados pela equipe e tiveram material apreendido.

Passamos por balsas carregadas de troncos, achamos cartuchos de armas pesadas na mata, pilhas de sacos plásticos de sal usados para conservar carnes. Me surpreendia o conhecimento de Bruno, sua generosidade e a forma simples com que dividia o que sabia, o que havia acumulado e aprendido com os povos indígenas. Avançávamos pela floresta, onde coisas simples, como se sentar para descansar um pouco, não é algo trivial. O solo, além de úmido, é tomado por vida de todo tipo, insetos, formigas. É alívio encontrar um pedaço de tronco onde se possa apoiar.

Por isso, era engraçado – e bom – ver Bruno passeando na cidade. Ele tinha se mudado para a capital federal para liderar, na Funai, as ações de proteção do povo pelo qual sempre lutou. Nas salas da autarquia, ele logo percebeu que, em sua luta, havia sido isolado pelo governo.

Depois de conseguir organizar uma grande missão no Javari, foi afastado, justamente por fazer seu trabalho.  Deixou as quadras de Brasília, mas seguiu de volta ao Javari, para atuar na defesa dos corubos, dos marubos e maiurunas. Deixou o passeio de fins de semana no Parque Olhos d’Água, para lutar pelas crianças do povo matis, as mulheres canamaris, os guerreiros culinas. Bruno deixou nossos olhos n’água. Ficam a sua obstinação, seu exemplo, sua luta.

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