Sem água, comida e comunicação: passageiros da Transbrasil passam quase uma semana isolados na BR-319

Sem suporte da empresa, os passageiros se viram obrigados a pedir ajuda na estrada, enquanto havia luz do dia e, durante as noites, a buscar abrigo dentro do ônibus danificado. (Fotos: Kemilly Sthifler/Arquivo Pessoal - Arte: Isabelle Chaves)

Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) — “Pânico, medo e desespero”. Foram essas as sensações que marcaram a experiência da cabeleireira Kemilly Sthifler, de 24 anos, moradora de Manaus, em sua primeira viagem a bordo de um ônibus da Transporte Coletivo Brasil (TCB), bem mais conhecida apenas por TransBrasil, empresa que opera por boa parte do País, desde 2009, colecionando multas, acidentes e denúncias.

A mais recente, enviada à REVISTA CENARIUM, foi um pesadelo de quase sete dias para cerca de 30 dos 45 passageiros que embarcaram em Porto Velho com destino à capital do Amazonas. Uma série de desafios que, somados à negligência da empresa, resultaram numa luta por sobrevivência em meio ao atoleiro da BR-319, sem água, comida ou comunicação, além de uma caminhada de 17 quilômetros em busca de socorro. 

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Foram dois problemas: o primeiro, um acidente entre Porto Velho e Humaitá, que deixou o ônibus tombado, além de uma longa espera por ajuda. O segundo, uma falha mecânica que comprometeu o funcionamento de um segundo veículo da empresa, na tentativa de cruzar a estrada coberta por barro e lama. 

Sem suporte da TransBrasil, os passageiros se viram obrigados a pedir ajuda na estrada, enquanto havia luz do dia, e, durante as noites, buscar abrigo dentro do ônibus danificado. Saíram de Rondônia em uma terça-feira, 1º de fevereiro, e só chegaram em casa no domingo seguinte, dia 6, após conseguirem carona de carreta, além de refúgio, água, comida e um novo transporte na comunidade de Igapó-Açu. 

Ônibus seguia com excesso de bagagens e com passageiros além da capacidade; um rapaz quebrou a clavícula com o impacto (Kemilly Sthifler/Arquivo Pessoal)

Insegurança

Os problemas começaram logo no embarque. A superlotação de passageiros, o acúmulo de bagagens em compartimentos inapropriados – até mesmo no banheiro do veículo – e as condições precárias para a rodagem pelas rodovias já davam indícios da possibilidade de uma tragédia.

“Como a viagem era para outro Estado, a gente imaginou um ônibus grande e bem aconchegante, mas quando deu o horário, apareceu um ônibus quebrado, velho, e todo mundo ficou com medo. Eu senti muita insegurança, mas não podíamos fazer nada porque, lá de Porto Velho, este era o único ônibus que vinha para Manaus”, contou Kemilly à reportagem. “Saímos da rodoviária por volta das 14h30. Embarcaram 45 passageiros, sendo que a capacidade era para 32”, acrescentou a sobrevivente, revoltada com o descumprimento das medidas estabelecidas para manter o mínimo de segurança.

A passageira e sobrevivente do acidente da TransBrasil entre Porto Velho e Manaus, Kemilly Sthifler, de 24 anos (Arquivo Pessoal/Reprodução)

O acidente

A viagem que de carro deveria durar pouco mais de 13 horas, começou a se tornar um inferno depois de quase 200 quilômetros percorridos, quando o veículo caiu numa ribanceira, pendendo para o lado direito. A esta altura, faltava algo em torno de 40 quilômetros para a cidade mais próxima, Humaitá, distante 696 quilômetros do destino final. Kemilly conta que muitos passageiros, assim como ela, que teve arranhões pelo corpo, ficaram machucados, sendo que um rapaz quebrou a clavícula.

Ela revela ainda que o socorro demorou muito para chegar; um ônibus cedido por outra empresa. “Quando era por volta de umas 20h30, chegou um ônibus da SiqueiraTur, com o pessoal da TransBrasil dentro, dizendo que nos dariam um suporte e que nos levariam à cidade de Humaitá”, relatou. 

Ao chegar, mais uma dose de descaso e negligência: “O pessoal da TransBrasil simplesmente comprou uma marmita e um copo de água para cada passageiro. Cerca de uma hora e meia depois, fomos surpreendidos com um terceiro ônibus. Uma moça da empresa disse: ‘olha, aconteceu um acidente. Não tem mais ninguém ferido gravemente, apenas um rapaz que vai fazer uma cirurgia. Então, vocês só têm duas opções: ou vocês ficam aqui em Humaitá sem suporte nenhum, ou vocês entram no ônibus que vai seguir para Manaus”, expôs, indignada.

Abandonados na BR-319

Sem muitas opções, ao menos 30 passageiros seguiram viagem com a TransBrasil rumo a Manaus. No entanto, mal sabiam que o pior ainda estava por vir. “Todo mundo entrou em consenso que era melhor a gente continuar. E, também, a gente ia ficar sem suporte nenhum, sem hotel (…) todo mundo já quase sem dinheiro. Muitas pessoas ficaram com a mala presa do lado em que o ônibus caiu, porque eles [TransBrasil] só iriam retirar as malas no outro dia, após o meio-dia”, disse a jovem à reportagem. 

Foi ao chegar na BR-319 que o veículo ficou atolado em meio ao barro. “E chegou em uma certa etapa do percurso em que os passageiros, os homens, tiveram de descer para ajudar, pois o ônibus já não tinha mais força”, contou a cabeleireira. Sem qualquer retorno da TransBrasil, todos passaram a noite no meio da estrada. No dia seguinte, os passageiros começaram a se organizar para prestar apoio, um ao outro, com o dinheiro e o que mais havia restado do acidente anterior.

“Quem tinha que estar dando assessoria e transporte era a TransBrasil. Jogaram a gente na estrada e ninguém mais se responsabilizou. Tivemos que tomar água do rio, pois estávamos sem água e haviam poucas casas em volta da BR para pedirmos ajuda. Além disso, chegamos a uma parte da estrada em que o ônibus já não funcionava mais, só servia mesmo para a gente dormir, para não ficarmos à mercê da selva. Já tinha quebrado o carburador, o ar-condicionado já não funcionava mais (…) então, o ônibus foi se quebrando no meio da BR-319”, desabafou.  

O segundo ônibus cedido da TransBrasil, danificado pelo atoleiro (Kemilly Sthifler/Arquivo Pessoal)

“Teve um certo momento em que o motorista disse: ‘Olha, eu desisto. Vocês vão ter que dar um jeito, andar, pedir socorro, pois eu não estou mais conseguindo ter contato com ninguém, não temos sinal’. Aí pegamos, dormimos dentro do ônibus, e no outro dia, às 5h30 da manhã, todo mundo se reuniu e decidiu andar. Percorremos 17 quilômetros, até que passou uma carreta e o motorista perguntou o que tinha acontecido. Ele disse, então, que poderia nos levar até a comunidade de Igapó-Açu, onde seria possível tomar banho, pedir ajuda e conseguir alimentos”, continuou Sthifler. 

“A jovem conta que os passageiros chegaram à comunidade de Igapó-Açu no sábado, 5, e que por lá, foram muito bem recebidos. Deram-lhes água, comida, ofereceram banho e roupas limpas. “No outro dia, falamos com um rapaz que tem um micro-ônibus, mas avisamos que estávamos sem dinheiro por conta do acidente, mas que poderíamos pagar com uma transferência pix assim que chegássemos à cidade e falássemos com nossos familiares. Ele topou e cobrou um preço barato para todo mundo”, acrescentou, neste momento, aliviada. 

Parte dos passageiros teve de descer para ajudar o ônibus a sair do meio do atoleiro; sem sucesso (Kemilly Sthifler/Arquivo Pessoal)

Mais negligência

Para chegar ao destino, o novo motorista, que deu socorro aos passageiros, fez o que a TransBrasil não foi capaz de fazer, mesmo sendo paga para tal: levou todos em segurança e pagou, inclusive, a travessia de uma balsa para chegar à capital amazonense. Mas ainda havia mais. Mais negligência da empresa. 

“Quando chegamos na rodoviária, o pessoal da TransBrasil de Manaus disse que estavam cientes do acidente, mas que o pessoal da empresa em Porto Velho teria dito que nós estávamos recebendo toda assessoria e suporte, sendo que não foi nada disso. Nós passamos dias de fome, andamos quilômetros, ficamos dias sem água. Os motoristas ficaram no meio da estrada e nós só seguimos viagem porque estávamos todos muito aflitos”, contou ainda à CENARIUM.

Segundo a passageira, o máximo que a TransBrasil fez foi pedir dados pessoais das vítimas do próprio descaso e despreparo para operar, como nome completo e a lista de bens que foram perdidos. “E não nos esclareceram nada. Nós saímos da rodoviária no domingo, 23h, e, até hoje, a gente não recebeu nenhuma ligação. Muita gente já foi ao posto de saúde para conseguir uma consulta e remédios, porque na hora do baque [o acidente], todo mundo se machucou, mas só fomos sentir dor depois”, acrescentou ainda Kemilly, sobre a falta de retorno da empresa. 

Não é novidade

Procurada em diversos canais de comunicação, a TransBrasil ignorou todas as tentativas de contato e questionamentos feitos pela CENARIUM. Todos os pedidos foram recebidos, mas nenhum atendido.

No entanto, a coleção de irregularidades da TransBrasil não é nenhuma novidade. Acessível para a grande maioria dos viajantes, que optam por comprar as passagens até 50% mais baratas, a empresa não investe o que ganha para desprecarizar os serviços que presta à sociedade. 

Segundo investigação do portal Metrópoles, até 2017, a empresa tinha nove linhas para rodar Brasil afora, mesmo ano em que já contabilizava quase 6 mil multas durante fiscalizações e 14 mil autuações.  A TransBrasil também possui uma vasta coleção de processos por direitos trabalhistas. Conta ainda com terminais clandestinos para venda de passagens e arrenda concessões para terceiros, que colocam nas estradas, ônibus ultrapassados e caindo aos pedaços, adesivados com a logomarca do empreendimento, como se fosse uma franquia. 

“Essa empresa deve parar de vender passagens. Deve parar de colocar em risco as vidas dos outros. Eu e alguns passageiros queremos justificativa da TransBrasil. Queremos indenização e vamos fazer o possível para entrar com um processo e obter nossos direitos”, concluiu Kemilly Sthifler. 

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