Sem ajuda do Estado, quilombolas constroem próprias escolas no Pará


Por: Mayra Leal

14 de fevereiro de 2025
Sem ajuda do Estado, quilombolas constroem próprias escolas no Pará
Os quilombolas precisam fazer as próprias escolas (Divulgação/Amarqualta)

BELÉM (PA) – No Alto Acará, região que é distante 130 quilômetros de Belém (PA), no Nordeste do Estado, vivem sete comunidades quilombolas. Ali, a falta de uma boa estrutura para o ensino de crianças e adolescentes é uma realidade. Os próprios quilombolas estão construindo as escolas com madeiras e afirmam que essa foi uma condição imposta pelo governo de Helder Barbalho (MDB) para que a população tivesse acesso ao ensino.

No território, há apenas quatro escolas com oferta do Ensino Infantil e Fundamental I, ou seja, até o 5° ano. Segundo a Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto-Acará (Amarqualta), cada uma tem apenas uma sala, onde todos os estudantes têm aulas juntos, mesmo estando em etapas diferentes de ensino. As aulas são ofertadas pelo município de Acará. Três das escolas foram construídas pela prefeitura e uma delas funciona em uma casa cedida pela Associação.

Nas sete comunidades vivem mais de 1700 pessoas e, de acordo com o último levantamento da Associação, quase 300 quilombolas estão em idade escolar. Não há oferta do ensino fundamental 2 (do 6° ao 9° ano) e nem ao menos do ensino médio que, pela legislação, deve ser ofertado pelo Estado. Para receber essa etapa de ensino, a comunidade está construindo uma escola com as próprias mãos. O que, segundo a Amarqualta, foi a condição imposta pelo Governo do Pará.

Sala de aula em escola improvisada no Alto-Acará (Reprodução Amarqualta)

O presidente da Associação Josias Santos, conhecido como Jota, contou à Cenarium que a Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc), afirmou que o órgão impôs às comunidades a obrigação de arcar com a responsabilidade de construir as próprias escolas. E que só assim a Seduc implementaria a grade oficial de ensino do Estado à comunidade.

“A Seduc nos colocou como condição para implementar o ensino médio lá no território, que a gente construísse uma escola. A própria comunidade quilombola da Amarqualta, que já vive tantos problemas, já está construindo. Essa estrutura eu considero até indecente de construir, para receber três turmas, para poder colocar os professores, para dar o ensino médio para a gente”, contou à CENARIUM

Construção da escola no território quilombola (Reprodução Amarqualta)

Desde janeiro, a comunidade trabalha diariamente em mutirão para levantar a escola, que se chamará Zumbi dos Palmares. A estrutura está sendo construída ao lado de espaço improvisado pela Associação, onde os alunos do ensino fundamental da Escola 21 de abril têm aulas.

A casa onde antes funcionava a unidade de ensino caiu por problemas na estrutura. Por alguns anos, as aulas ocorreram em um refeitório emprestado, que não tinha nem ao menos um banheiro adequado e há dois anos passaram a ser realizadas na sede da Associação.

Banheiro improvisado pela comunidade, no local onde acontecem as aulas (Reprodução Amarqualta))
Estrutura onde funcionava escola de ensino infantil no território (Reprodução Amarqualta)

Representantes do território estiveram entre os manifestantes que ocupam o prédio da Secretaria de Educação do Pará (Seduc) há quase um mês, em protesto contra a lei 10.820/2024, que já foi revogada. Segundo a associação, eram 150 quilombolas na ocupação.

Pelo menos 40% dos manifestantes que estão aqui são quilombolas e até assim nós, povo preto, somos invisibilizados. Mesmo estando aqui, usando faixas, fazendo falas, a gente vê que há um processo de ignorar nossa presença”, ressaltou Jota durante os protestos.

Na quarta-feira, 12, os deputados do Pará aprovaram por unanimidade a revogação da legislação. O movimento informou que continuará ocupando o prédio até que a revogação seja publicada no Diário Oficial do Estado.

Josias Santos, presidente da Associação na ocupação da Seduc/ Créditos: Mayra Leal

Uma das principais pautas dos protestos no Pará foi a permanência do Sistema de Organização Modular de Ensino (Some), que garante educação presencial em localidades distantes das sedes municipais. Sistema que para muitas comunidades quilombolas ainda não é uma realidade. No Alto Acará, a associação denuncia que não há nem ensino médio e, sequer, séries avançadas do ensino fundamental.

“Nós temos apenas o sonho de ter o SOME, ou de ter o ensino médio regular, ou de ter o ensino fundamental maior no território. E esse sonho parece que, com essa nova lei, fica muito mais distante. Só no primeiro ano do ensino médio nós temos 25 pessoas, contingente suficiente para a gente ter essa turma. E só pro fundamental maior, juntamente com o fundamental menor, nós temos mais de 250 alunos. Então, nós temos uma demanda muito grande”, defende Jota.

A falta destas escolas faz com que muitos alunos interrompam o sonho de estudar. É o caso de uma adolescente identificada como Letícia, 17 anos, moradora da Comunidade de Turé. Ela parou os estudos na última série do ensino fundamental.

Eu estou há dois anos pra fazer o ensino médio, que já era pra eu ter terminado e eu não consigo porque meus pais não têm condição de comprar uma casa na cidade e lá no quilombo a gente não tem escola. A gente sofre com falta de transporte, de professores e de recursos”, conta a jovem.

Para continuar os estudos, os quilombolas precisam sair do território e enfrentam desafios. Natural da comunidade de Ipitinga Grande, no mesmo território, Juliana Pantoja foi a única de dezoito irmãos que teve acesso ao Ensino Público Superior. Ela se formou em Agronomia pela Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), e em Licenciatura Integrada em Ciências, Matemática e Linguagens pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

Quilombola, Juliana Pantoja foi a única dos dezoito irmãos a estudar em uma universidade pública/ Foto: Acervo pessoal

O sonho de ajudar outros jovens a terem a mesma oportunidade fez com que ela se juntasse ao movimento em busca da implantação do Some no território. Quando a escola for construída, ela disse que será uma das professoras.

Temos pressa pra educar os nossos povos e começamos a batalhar na contramão do sistema. A nossa ideia é ter professores do quilombo, do próprio território para que não haja evasão. Os alunos precisam de um professor presente, uma referência para tirar dúvidas, pessoas de fácil acesso e que conheçam a realidade deles”, destaca.

Juliana atuando como professora em Belém – Foto: Acervo Pessoal

No dia 6 de fevereiro, o Governo do Pará anunciou Processo Seletivo Simplificado exclusivo para professores quilombolas. A expectativa é a contratação temporária de profissionais para atuarem em escolas e turmas da rede pública estadual de ensino nos territórios quilombolas. As vagas são para cadastro reserva. As inscrições vão até 16 de fevereiro no site da Seduc.

Procurada pela CENARIUM, a Secretaria de Educação do Pará informou que atualmente possui 81 turmas localizadas nos territórios quilombolas em todo o estado e que, em parceria com a Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos (Seirdh), possui uma Câmara Técnica Antirracista de Educação para avançar na qualidade da educação para relações étnico-raciais e educação escolar quilombola.

Sobre a denúncia da Amarqualta de que a construção da escola pela própria comunidade foi uma condição imposta pela secretaria para oferta do ensino, a Seduc não respondeu.

Leia mais: MPF pede proteção de território quilombola no Amazonas
Editado por Izaías Godinho

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