Sem ciência, sem asfalto: BR-319 será reavaliada com foco em viabilidade socioambiental


Por: Lucas Ferrante

30 de julho de 2025
Sem ciência, sem asfalto: BR-319 será reavaliada com foco em viabilidade socioambiental

Nos últimos dias, ganhou força um compromisso firmado entre os Ministérios do Meio Ambiente e dos Transportes para conduzir de forma técnica a discussão sobre a pavimentação da BR‑319. O que se delineia, porém, não é uma autorização automática para asfaltar a rodovia, mas um processo de avaliação que definirá sua viabilidade ou não viabilidade do ponto de vista socioambiental. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, tem afirmado reiteradamente que o que ocorreu com a BR-319 não se trata de um acordo político no sentido tradicional, mas sim da construção de um procedimento técnico alinhado a práticas internacionais, com foco em garantir que qualquer avanço ocorra dentro de critérios claros. Foi enfatizado que, desde os anos 2000, Marina pauta sua atuação na defesa de estudos mais abrangentes – em especial uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) – para avaliar todos os impactos e não apenas aqueles diretamente ligados ao traçado da rodovia.

Durante o VIII Congresso Internacional de Educação Ambiental dos Países e Comunidades de Língua Portuguesa, realizado em Manaus, Marina ressaltou que a pavimentação da BR‑319 deverá ocorrer somente após a conclusão da AAE, considerada mais completa que o antigo Estudo de Impacto Ambiental (EIA), pois analisa a área de influência total do empreendimento. Segundo ela, a AAE não é um entrave, mas uma exigência técnica internacional de praxe em grandes projetos. Um estudo científico publicados no periódico Conservation Biology, além de outros textos científicos na Science, Nature e The Lancet, já destacaram que a rodovia BR-319 pode gerar impactos que extrapolam sua área direta de influência.

Marina comentou que seu discurso nunca foi simplesmente “proibir” a obra — mas sim definir como ela pode ser feita adequadamente, com responsabilidade e respeitando o meio ambiente. Em suas palavras: “não dizemos apenas o que não pode, mas como pode da forma certa”. O apelidado “acordo” com o Ministério dos Transportes, na verdade, resultou na concordância do ministro Renan Filho com a realização desse estudo ampliado. Entretanto, todos os estudos científicos revisados por pares e publicados em periódicos especializados têm sido unânimes: a rodovia BR-319 é inviável do ponto de vista ambiental, social e econômico, além de acarretar diversas consequências para a saúde pública, como o aumento de endemias — incluindo malária e febre de Oropouche —, bem como o risco de emergência de novos patógenos armazenados na região.

E esse é um ponto crucial: Marina Silva tem falhado ao não reconhecer que o IBAMA vem omitindo informações relevantes durante o processo de concessão da licença emitida no final do governo Bolsonaro — licença que foi alvo de ações judiciais movidas pelo Ministério Público Federal e pelo Observatório do Clima. Como já noticiado pela Cenarium, em reuniões solicitadas pelo MPF e pelo CENSIPAM, a responsável pelo licenciamento no órgão tem blindado a equipe técnica que concedeu a licença, a qual não participou de nenhum dos encontros em que pesquisadores apresentaram evidências científicas demonstrando a inviabilidade da rodovia. Assim, o IBAMA parece selecionar de forma arbitrária o que considera ou ignora no processo, desconsiderando estudos científicos revisados por pares que apontam os graves riscos socioambientais do projeto.

Chamado de “Plano BR‑319”, o conjunto de ações proposto entre os dois ministérios visa construir uma pavimentação socioambientalmente responsável, contemplando medidas como controle de desmatamento, regularização fundiária e fortalecimento de comunidades locais, de modo a viabilizar licenciamento sem repetir impactos observados em outras estradas amazônicas, como a BR‑163. Dessa forma, é fundamental que Marina Silva estabeleça um canal de diálogo direto com os pesquisadores e tome conhecimento das omissões cometidas pelo IBAMA. É necessário, inclusive, avaliar a exoneração de membros do órgão que tenham deliberadamente ocultado informações científicas durante o processo de licenciamento ambiental — uma conduta que, além de comprometer a legalidade do processo, configura crime à luz da legislação ambiental brasileira.

Paralelamente, no Congresso Nacional, avança a análise de um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental para obras ditas “estratégicas” — como a BR‑319 — possibilitando processos menos rigorosos ou até automáticos se forem considerados relevantes e com tramitação longa. Essa mudança legislativa impulsionou o debate sobre os riscos ambientais envolvidos na rodovia, especialmente diante do potencial de acelerar o desmatamento, colapso dos “rios voadores” e surtos zoonóticos. Apesar dessas preocupações, o governo segue defendendo que o plano de pavimentação da BR-319 inclui salvaguardas ambientais, como a transformação da rodovia em uma espécie de “rodovia parque”, com cercas de isolamento, pontos de acesso controlado e passagens subterrâneas para a fauna. Também são mencionadas zonas protegidas nas áreas adjacentes, com reforço do monitoramento por parte do IBAMA e da Polícia Federal. No entanto, tais propostas já se mostraram tecnicamente insustentáveis e cientificamente refutadas.

Conforme apontado em artigo publicado na The Lancet Planetary Health em agosto de 2024, a ideia de “rodovia parque” é considerada contraintuitiva e anticientífica, uma vez que o aumento da circulação de veículos e do acesso humano à região leva inevitavelmente à ampliação do desmatamento, à degradação florestal e à intensificação dos riscos de transbordamento zoonótico (spillover), com impactos diretos sobre a saúde pública e a biodiversidade. Ademais, a própria Polícia Federal já declarou, em diferentes ocasiões, que não possui capacidade operacional ou estrutura institucional suficiente para garantir a governança efetiva da área, sobretudo diante do histórico de impunidade e da expansão de atividades ilegais nas zonas de influência da BR-319.

A insistência nessas propostas revela um perigoso descolamento da realidade técnica e científica, que beira a ingenuidade. Mais que equivocadas, tais soluções simplistas são irresponsáveis — pois ignoram décadas de evidências empíricas sobre os impactos irreversíveis da abertura de estradas na Amazônia. Em vez de representar um avanço, a proposta de uma “rodovia parque” serve apenas para disfarçar a ausência de uma política ambiental séria e compromissada com o futuro do país.

Dessa forma, as preocupações persistem — e com razão. Todos os especialistas que estudam a região há décadas denunciam que, historicamente, a abertura de estradas na Amazônia provoca o chamado efeito “espinha de peixe”: uma proliferação de ramais informais que se expandem lateralmente à via principal, abrindo caminho para madeireiros, grileiros, garimpeiros e pecuaristas. Esse padrão já é amplamente documentado na BR-319 e deve ser potencializado com sua pavimentação como demonstrado em estudos publicados nos periódicos Land Use Policy and Environmental Conservation.

Estudos de modelagem e monitoramento apontam que a pavimentação da rodovia pode levar a um aumento de até 1200% nas taxas de desmatamento na região, colocando a Amazônia à beira de um ponto de inflexão climático irreversível — o chamado “tipping point” — que, uma vez ultrapassado, poderá desencadear o colapso dos chamados “rios voadores” e comprometer a regularidade das chuvas em regiões densamente povoadas do Sudeste e Centro-Oeste do Brasil.

Esse impacto, no entanto, não se limita às fronteiras do bioma amazônico. Conforme demonstrado no estudo que coordenei e que foi publicado na revista Conservation Biology, a interrupção dos fluxos atmosféricos de umidade oriundos da Amazônia — responsáveis por irrigar a Mata Atlântica por meio dos rios voadores — já está alterando padrões de chuva e colocando em risco espécies endêmicas em biomas distantes. A pesquisa, realizada em colaboração com pesquisadores do INPA, UFAM, UNILA, USP e da NASA, demonstrou que alterações no ciclo hidrológico amazônico já afetam diretamente a diversidade e a dinâmica populacional de anfíbios no Sudeste do país, sendo este um bioindicador dos riscos ampliados da pavimentação da rodovia BR-319 e como esta rodovia pode desencadear colapsos ecológicos em cascata em toda a América do Sul.

Diante desse cenário, ignorar os alertas da ciência e insistir na pavimentação da BR-319 é mais do que um equívoco técnico — é uma aposta irresponsável com implicações continentais. A abertura da rodovia não representa apenas um risco ambiental localizado, mas um vetor de colapso climático e ecológico que pode comprometer a segurança hídrica, alimentar e sanitária de todo o Brasil. Assim, o cenário que se desenha deve ser o de um compromisso focado em estudar a viabilidade — ou a inviabilidade — da obra, sem qualquer promessa de autorização para o asfaltamento. A palavra de ordem, na visão de Marina Silva, é “fazer o que for possível desde que os estudos mostrem como é viável e responsável”. E isso perpassa por considerar todos os estudos revisados pelos pares e publicados em periódicos científicos. Para a comunidade científica, é evidente: sem embasamento científico, não pode haver asfaltamento.

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